Anatomia do cérebro de um agressor

Há uns bons anos, numa cidade estrangeira, vi-me envolvida numa situação deveras perigosa. Encontrava-me de férias com pessoa amiga e acedemos a entrar em casa de um completo desconhecido, habitante local, muito hospitaleiro. Eu estava consciente dos riscos, mas não consegui evitar o que aconteceu, por motivos que não contarei agora.
Enquanto nos encaminhavamos para a casa do indivíduo, ia-lhe concedendo o benefício da dúvida. "As pessoas não são todas más, não podemos viver sob o medo, e a vida surpreende-nos com as suas exceções, onde tantas vezes encontramos surpreendente beleza". As pessoas acusam-me de idealismo. Não me pareça que seja grande falha de caráter, mas também não me interessa o nome que lhe dão nem o julgamento que fazem. Gosto de acreditar que as pessoas realmente valem a pena e faço-o até ao limite. A experiência que passo a relatar não me tornou diferente.
Ao entrarmos na casa do indivíduo o seu caráter hospitaleiro desapareceu, e tornou-se claro, mesmo sem poder dialogar com o outro, a não ser por escassos momentos, que estavamos em apuros. Conhecíamo-nos bem, portanto pudemos entender-nos por olhares e gestos mais do que por palavras. Concentrei-me totalmente nas possibilidades de escapar. Tínhamo-nos metido num verdadeiro buraco. O indivíduo não pretendia deixar-nos sair, para além de que nos apercebemos da existência de um segundo homem dentro de casa. Escapar dali sem dano, apenas gritando por ajuda, era pouco provável. A porta era sólida e tinha sido bem fechada após a nossa entrada; encontravamo-nos num prédio de apartamentos de uma grande cidade, a uma hora em que a maioria do moradores estava no emprego. Para que não nos tornassemos vítimas, a porta teria de ser aberta por ele.  A estratégia consistia em agir em aliança com o potencial agressor, mostrando a nossa concordância, convencendo-o de que tudo era normal. Era preciso levá-lo a acreditar não ser agressor, não ter más intenções e estarmos nós a adorar o encontro.  Aquilo, para ele, era só o início de uma bela festa.  Jogamos, assim, um dos jogos mais perigosos das nossas vidas, no qual a própria vida se jogou. Falamos, rimos e mostramo-nos disponíveis. Convencemo-lo de que era necessário fazer compras para preparar a festa que se ia seguir; nós ofereceríamos o almoço, e insistíamos, portanto tínhamos de ir rapidamente ao supermercado mais próximo comprar montes de álcool e comidinha. Resistiu à nossa ida. Não sabia bem. Hesitava. Jogou a nosso favor o facto de realmente ele não ter em casa nada que se comesse ou bebesse, e o nosso desespero controlado pela razão. Concentramo-nos na representação. Lembro-me perfeitamente de haver momentos em que me parecia que o outro deixava transparecer demasiada ansiedade, e eu corrigia, mostrando-me ainda mais disponível. Conheço os cães; aquele animal não podia perceber o nosso medo. Certo é que conseguimos que nos autorizasse a ir ao supermercado, abrindo-nos a porta de casa e depois a do elevador. Tudo demorou muito, porque não estava seguro. Íamos na medida em que ele autorizava, queria, mas havia momentos em que hesitava, e tornava-se necessário reafirmar argumentos já usados, melhora-los. Não íamos fugir, mas comprar mantimentos para uma festa de arromba. E antecipavamo-la. Ríamos. Prometíamos.
Já estavamos no elevador, mas ele travava o fecho da porta de correr, com grades, própria dos elevadores antigos. Obrigava-nos a repetir o que íamos fazer, quanto tempo demoraríamos Houve um momento em que a fechou, apenas um segundo, e o elevador ficou preso, iniciando a descida. Nesse momento, quis abri-la de novo, mas foi impossível. O homem gritou, gemeu, como um mamífero esfomeado que perde a presa. Eu e quem me acompanhava fitamo-nos imóveis, atordoados, e incapazes de uma palavra. Não falamos até muitos metros fora do edifício. Abraçamo-nos depois e nunca esquecemos este dia cinzento. Raramente falamos sobre o assunto.

Lembrei-me do acontecimento, hoje, quando li uma entrevista a Manuel Maria Carrilho na revista que a cabeleireira me passou para a mão. O caso incomoda todos, porque não se passa no bas fond nem entre gente que não sabe falar nem escrever.
Carrilho afirma não perceber porque o tratou a mulher tão bem na véspera da sua ida a Paris nem porque lhe pediu que reservasse quarto num hotel romântico. Declara que na semana anterior à viagem, da qual regressou sem a possibilidade de entrar em casa, Bárbara se mostrou muito bem disposta, muito feliz...
Eu percebo, e creio que a triste aventura que relatei ilustra essa perceção.

Este vídeo é também muito eloquente sobre o assunto. Arrisquem vê-lo até ao final.

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