Os meus heróis

O meu pai demorou a digerir o meu aparecimento. Eu não era um rapaz. Habituou-se, porque a filha era fascinante em beleza e graça, e lançou-me consigo no mundo como se leva o filho homem. Fui o seu rapaz-mulher. Enquanto a minha mãe me transmitia em casa os valores próprios de uma menina que precisará de um homem para sobreviver, o meu meu pai dizia-me "não precisas de ninguém para te fazer à vida; tens de ser senhora do teu destino. Decides a tua vida e mais nada". Eram lições de liberdade, de pensamento livre, de ação segundo os valores da consciência, transmitidas pelo  homem encurralado na ditadura, mas cuja alma se elevava acima desta. Tendo agido no contexto dessa ditadura e dos pressuposto do colonialismo, o meu pai foi também um homem ambíguo, aprisionado pela formatação da propaganda, e em luta com os seus principios morais.
Nasci numa família que não era rica, mas dentro da qual havia uma educação cristã, que estabelecia limites muito claros entre o bem e o mal, embora tantas vezes a promiscuidade das ideias nos tenha traído. Em nome do meu pai e da minha mãe, desses gigantes e heróis de amor e raiva dos quais provenho, e à falta de água-pé, essa bebida qiue desconheci até aos 13, bebo um uísque com mais de 30 anos que trouxe do free shop de Joanesburgo, numa das visitas que lhes fiz a Tete em 1978 ou 1979. Ainda está ótimo. À vossa, meninos. Grata pela vida que me deram, por me terem ajudado a ser só minha sem limites. Grata pela saúde, pelo amor até ao último momento. Grata por nos termos encontrado neste ápice de espaço-tempo e desejosa por vos abraçar de novo, um outro abraço sem corpo. Meus queridos, não foi sempre bom, mas foi uma inesquecível, tremenda viagem atribulada. Até outro dia, e segue mais um golo à vossa.

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