As Crónicas do Café Colina

Eusébio: carne para canhão do desporto

O café Colina está de olhos postos no écran de tv, visionando as imagens de arquivo de Eusébio, perdido para a vida hoje de manhã. São imagens de jogo, uma delas ainda em Lourenço Marques, outra com a mãe e irmãos frente à casa onde terá vivido na Mafalala.
Nunca vi o Eusébio como futebolista, mas como o preto escolhido devido a um talento que alguém testemunhou e reconheceu. Não tivesse acontecido esse minuto de sorte e talvez tivesse vindo a trabalhar com o meu pai e a ser um preto dos que podiam ganhar mal, ter direito a sobras e porrada, situação que os brancos do lado nobre da cidade aparentemente nunca testemunharam, dando jeito relegar o meu pai para o reduto dos maus, porque é muito fácil dividir a humanidade desta forma, incluindo-nos nós, sempre, no lado dos bons.
O colonialismo começa a morrer. Morre com Eusébio, seu protagonista, usado pela estrutura como carne para canhão do desporto, a bem da glória do Império, que para a administração colonial foi apenas a Metrópole. As colónias interessaram nada, a não ser como fonte de riqueza e, mesmo assim, mal aproveitada. Tivesse a Metrópole visão de conjunto e capacidade de projeção e planeamento futuros e teria edificado nas colónias, em conjunto com os que a ela pertenciam, um efetivo, poderoso império de iguais. Mas a metrópole pensou como pensam os portugueses hoje: a medo, a menos, poucochinho. Por isso, a descolonização foi uma desgraça para todos: para os colonos, destituídos de bens, dignidade, segurança e vida, e para os africanos, cuja sobrevivência, após séculos de colonialismo, dependia dessas estruturas, subitamente desaparecidas sem deixar gente habilitada a gerir o que se deixava, nem educada para pensar e construir. A terra do Eusébio tornou-se um campo de batalha no qual não se existia fora do molde marxista-leninista, ópio do pensamento que tudo decretava como ópio do povo. As ex-colónias passaram anos terríveis de aparente liberdade: uma prisão na prática tão real como a do colonialismo.
Hoje, as ex-colónias continuam a existir sobre o tapete desses resto. Quarenta anos depois o tapete ainda lá está, gasto, certo, mas resta a teia que segurava os fios. Quarenta anos não é tempo relevante. Enquanto a última leva dos nascidos no colonialismo existir, brancos ou pretos, não será ultrapassado, No que depender de mim, não será igualmente esquecido. O meu pai e o Eusébio foram rostos do colonialismo como eu sou o resultado vivo do seu final.
Sentada no Colina, apanho o sinal da internet, bebo a minha meia de máquina bem quente, enquanto a televisão vai mostrando o Eusébio com e sem Cristiano Ronaldo, e só me ocorrem as mesmas questões meramente retóricas que aos sete anos me assaltavam, embora as palavras possam ser diferentes: se tivesse nascido preta, na Mafalala, andaria descalça com os pés rebentados, trabalhando para os patrões brancos a troco de chá e pão com compota como principal refeição do dia, sem roupa, sapatos, cadernos, lápis para ir à escola? Se tivesse nascida preta, no bairro da Mafalala, teria aprendido a ler e a escrever? Se tivesse nascido preta convir-me-ia jogar tão bem futebol que a minha fama chegasse aos ouvidos dos brancos?
Conterrâneo Eusébio, não digo compatriota, porque isso da pátria é confuso para ambos, faz boa viagem. Kanimambo, camarada.

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