Título: retina e texto de olho fechado, sem correção

A cadela saudável pousada sobre as minhas pernas, enquanto escuto música, deitada no sofá, esperando que a retina faça o favor de me permitir recuperar a visão. A doente, no hospital, com um cateter na perna por onde lhe chega o soro e a insulina, sem as minhas pernas e o meu calor.  Um acorde projeta-me para a original existência tentacular do meu ser e pensamento: o meu pai e a minha mãe: baterias que se autocarregavam ao sol, com os dois pólos perfeitamente ativados, instilando em mim a as suas impensadas energias criadores, destruidoras, regeneradoras. Escultores tardios, aleatórios, de um bicho que reza, entre bichos que, não rezando, rezam mais. Foi esse acorde de uma beleza lírica que me transportou para os meus pais, para a habilidade humana de criar artificialmente o que só a natureza sabe produzir sem razão, e me transportou depois  até à oração e princípios nos quais lembro a minha mãe sentada ao meu lado sobre uma cama coberta com colcha fresca em tecido de fantasia  com largas rosas de pétalas muito carmim, ensinando-me as ladainhas da liturgia católica, que não questionei como não questionei a maternidade nem a autoridade daquela mulher a quem pertencia.


Mas hoje, passadas viagens, impressos, dias, noites, anestesias, as orações aos santos invisíveis, que já lá estão e podem escutar-nos no silêncio intemporal. Uma mulher entrada nos 50, atirada à solidão da beleza, sem ascendência nem descendência, dedicada ao mistério das coisas que são porque são, como a poesia, uma obra de arte, um cão, um besouro. Compreendi fugazmente o sentido de uma vida que existe para se maravilhar com a simplicidade, e deitada com a cadela saudável sobre as pernas desejei rezar outras orações. Por exemplo, um Manuel António Pina, que poderia ser “ Essência nossa que estais onde pertencemos, venha a nós o vosso reino…” ou uma Adília Lopes: “ Avé Adília, cheia de graça, a vida é convosco, bendita sois vós entre os seres e bendito o vosso ventre que nunca gerou…” Um credo cujo objeto fosse Fernando Pessoa. “Creio em Fernando Todo Poderosos, criador de céus e de terras…” A justeza de tais orações, que se somariam a todas as outras, como a prece a Santa Bárbara, protetora  contra as tempestades. A mulher-bicho. que vê mal, abençoa os geradores da mente com a qual reescreve orações puras, plenas que lhe permitem aproximar-se da única religião sem pecado, para além dos bichos: poesia.

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