A primeira bofetada

Foto: Florina Onetiu

A primeira vez que a minha mãe me deu uma bobetada foi no prédio do Alto-Maé e doeu-me. Nessa altura não fazia ideia do que viria a ser o resto da minha vida.

Tinha cinco anos e o hábito de abrir a porta sem barulho, fugindo para me esconder no patamar das escadas, entre o sétimo e o sexto andar, espreitando as filhas do juiz a namorar em baixo. As escadas eram frescas, sombrias, resguardadas. Estava-se ali bem; fugia-se ao calor. Às vezes, as filhas do juiz olhavam para cima, notando a pequena voyeuse, e eu dissimulava-me, enquanto elas se riam, e continuavam sem me enxotarem nem dirigirem palavra. Eu não lhes interessava.

Não saber nada sobre o futuro é uma bênção. Uma bofetada é apenas aquela bofetada, que nada nos impede, e sem malícia nos estimula a encontrar maneira de repetir o mesmo sem consequência amarga. Dói, mas desenvolve.

Se pudéssemos acessar o futuro, recusalo-ía-mos ou tentaríamos negocia-lo como é costume com os promotores das televisões por cabo sentados nos sofás da nossa sala. No nosso caso, preferíamos um pacote com diferentes canais, não daria para escolhê-los à nossa medida, puxando um par deles de cada pacote disponível?!

Se tivesse podido conhecer o meu futuro, observá-lo-ia marcado de bofetadas duras, até procuradas, que transformariam a primeira de todas numa carícia de mãe. Havia de ser obrigada a contemplar um anjo louro, imaculado nos cinco anos, transformado numa mulher entre muitas, com cicatrizes espalhadas pelo corpo, atravessando a pancada como uma casa em chamas, procurando a saída e acreditando que existe, que se salvará continuando em frente. Era capaz de não ser lá grande filme para se ver nessa idade. 

Quando recebemos a primeira bofetada não podemos saber que sem ela e as que virão não compreenderíamos o peso e valor dos gestos e escolhas que realizamos. Esse filme, que justamente não podemos ver, é uma belíssima e singular realização sem guião. 

E agora, cá estamos.

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