Hoje é domingo


Tenho a minha mãe sepultada em campa rasa com uma tabuleta onde carimbaram um número a tinta branca. A minha mãe não foi um número, mas há vários à nossa volta. Duzentos euros é o valor da lápide retangular, lisa, branca, onde pretendo que inscrevam o seu nome, data de nascimento e morte, e uma frase que lhe escrevi durante a vigilância de um exame de Física e Química, enquanto pensava numa formulação de Einstein a propósito de montanhas russas e desaceleração de um corpo em movimento. Depois, mais 20 euros para o coveiro que arranjará a campa com a lápide, quando a puder pagar. Duzentos e vinte euros é muito dinheiro, e todos os meses há contas a mais: o IMI, o imposto automóvel, o seu IRS do ano passado, dois pneus e um farolim, uma operação aos olhos, óculos de dezoito dioptrias, o veterinário da cadela que morreu, o da que está viva, o condomínio, a devolução dos empréstimos aos amigos gentis, o ouro no penhor. Já não me recordo quando custou o ossário onde estão os restos do meu pai, com os da sua mãe. Pagámo-lo por inteiro. Nesse tempo conseguia-se pagar um armário para guardar a morte; neste, é difícil mantermo-nos vivos.
Quero tanto comprar-lhe a lápide, para ela ver que me aguento na sua ausência e que pode orgulhar-se de mim para sempre. Mas o orgulho tem de esperar. Tudo tem de esperar.
Apesar de tudo, ainda consigo sorrir quando me cruzo com alguém, e isso ninguém me rouba, mãe.

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