Mono do Império

Esta história é sobre morte. 
Esvaziei o sotão por imperativos do condomínio. Mobílias. Malas. Tudo o que para aí se remete, inteiro ou partido, para arranjar depois. Encontrei os meus livros da escola, de Moçambique, e dos primeiros anos em Portugal; o livro A Minha Vida Sexual, do Dr. Fritz Khan, o tal que li às escondidas do meu pai, na Matola. 
Abri finalmente a arca da minha mãe, que foi para Moçambique com o seu enxoval, nas entranhas do Infante. Dentro, os restos não orgânicos do meu pai. Eu e a minha mãe nunca chegamos a ir ao sotão limpar os seus vestígios. Não éramos capazes. 
Herdei cabos elétricos, fios de toda a espécie. quilos de corda e fio de pesca, fino e grosso, que usavamos em Marracuene ou nos outros lugares onde íamos. Herdei ferramentas enferrujadas. Mais de cem quilos de ferro. Guardei algumas peças, por graça, e a caixa das ferramentas, de boa madeira, de que me lembro, desde sempre. Vou restaurá-la para os meus papéis. Havia uma outra, em ferro, com o nome e morada do meu pai em Tete. Não era a sua caligrafia. Deve ter pedido a alguém no Maputo que lha enviasse barco ou avião, ja nos tempos de Cabora Bassa. Raspei esses dados com álcool e um esfregão de arame, e mandei fora. Não a conhecia, não lhe tenho apego, mas não queria que quem encontrasse a caixa lesse dados tão precisos. Sinto vergonha, em seu nome, de deitar fora uma vida de trabalho e lazer. De deitar fora planos, sonhos. Pareceu-me, enquanto fazia aquele trabalho, que tinha esvaziado a Bedford e encaixotado tudo para um dia, na terra onde nasceu, talvez. 
Não vale a pena construir grandes planos. Morreu cedo e incapaz, e o que restava acabou hoje, num contentor de monos do município de Almada. Os homens do ferro estão lá em baixo respigando, felizes!
Já podem ir para a semana ao aterro procurar os restos do Império. Há camas, mesas, cadeiras. Algumas saíram do caixote dos retornados diretas para o sotão e nunca cá entraram. Os meus pais sobrestimaram o tamanho da casa. Entretanto, criei o quarto-Império, para onde atirei tudo aquilo de que não consigo libertar-me ainda. Não dá. Não consigo. Venham cá buscar, se quiserem. Uma pessoa precisa de tempo e fases para conseguir atirar o passado borda fora. 
Já me libertei de tanto. Dei. Vendi ao desbarato. Reciclei. Neste momento, o mais vivo mono do Império que por aqui resta, acho que sou eu.



Mensagens populares