Voa, mulher, voa

Os nossos braços são asas cujas penas, e estrutura na qual encaixam, não conseguimos ver, mas estão lá, e se por minutos conseguirmos voltar à inocência e imaginação de uma menina no baloiço,  veremos claramente o apetrecho e voaremos.

Até muito tarde na adolescência, fui capaz de voar. Nos sonhos, lembro-me. Dobrava ligeiramente as pernas, agachava-me, o rabo quase a roçar o chão, e, simultaneamente, elevando os braços e baixando-os rapidamente, com muito vigor, o meu corpo elevava-se sem peso. Quanto mais rápida e vigorosamente batesse os braços, mais alto me elevava, mas o esforço inicial era o que contava. Assim que tivesse atingido a altitude de um prédio de cinco andares, poderia espaçar o bater de braços, com as asas invisíveis, e elevar-me lentamente até aos picos, voando sem limites. Pousava, voltava a elevar-me. E a cada noite o meu voo se tornava mais perfeito, menos exigente de esforço inicial. Voar era como andar.

Tudo à minha volta era bastante sombrio nessa altura da minha vida – os lugares, as pessoas, a ignorância - mas eu voava normalmente à noite, sem pedir,  apenas porque era capaz, e isso compensava muito.

Foi assim durante muitos anos e o tempo foi passando sem que contasse os dias.

Esperei. Permaneci. Acreditei. Vinguei. Um mecanismo muito bem fabricado, admito.

Tornei-me adulta e fui viver essa vida, até ao dia em que me lembrei que tinha deixado  de voar. Não sei porquê, mas à noite já não voava. Estava muito presa ao chão. Havia obstáculos no meu caminho. Atravessava monturos, aterros sanitários de diversa índole, e caminhava por eles fora, mas sem voar. Tudo à minha volta tinha melhorado como eu esperava que acontecesse nos tempos em que voava. Tinha uma vida. Ganhava dinheiro. Os homens e as mulheres desejavam-me. Os amigos riam-se com as minhas graças, os colegas e alunos admiravam-me, o meu trabalho não tinha mácula, mas não voava.

Há uns dias atrás, conduzia na Capitão Leitão, e cruzei-me com uma colega de uma escola onde trabalhei há uns anos, e de onde saí, porque nunca nenhum trabalho me completou, portanto fui mudando, saltando, à procura de voar, provavelmente.

A minha ex-colega está nos seus cinquentas, avançados. Não me viu. Vinha cambaleante, ligeiramente coxa de uma perna, como sempre a conheci, magrita, pequena, toda vestida de escuro com os cabelos soltos. Talvez tenham sido os cabelos, não sei, mas houve um instante em que a vi com 18 anos. Não era a Marta, professora de História, uma mulher inteligente, sensível, mas calada, a quem a vida negou claridade, mas uma garota cheia de sonhos, de futuro. Foi uma visão, e ela nunca saberá que a tive.

Vi-a aos dezoito, já com a tendência para coxear, que ainda não tinha chegado, mas, pela forma como atirava as pernas, lá chegaria. Vestia-se descontraidamente, moda desses finais de 70: calças de ganga, t-shirt, sandálias, mas tudo escuro, como no momento presente: azul, preto. Os olhos, o rosto, isso era diferente. Não sorria muito, mas sorria um pouco. Sabia que era jovem, que o que houvesse de acontecer na sua vida, ainda não tinha vindo, mas podia vir, quem sabe, não era tarde. E os cabelos, negros, soltos. Acho que a culpa da minha visão está nos cabelos que se mantiveram iguais.

Foi um ápice.

Vi-a aos dezoito, e no instante seguinte voltei aos seus cinquenta e muitos. Senti vontade de parar, de a interpelar para lhe contar o que tinha acabado de ver. Ela haveria de se rir na minha cara, de achar que eu não tinha o direito. “Nunca bateste bem. Tens cada uma!”, dir-me-ia. “És uma inadaptada, tu sabes, toda a gente sabe. Olha para o que te deu!” Desmereceria a minha visão. Rir-se-ia, mudando de assunto, dando-me o desconto.

Por isso não parei e continuei. Queria ir até Cacilhas beber uma cerveja, sentir água na cara, levar uma bofetada de vento, respirar.

Mas devia ter parado, se tivesse coragem. Devia tê-la confrontado, não devia?! Devia tê-la encostado à parede da velha Academia Almadense e dito, “oh, minha parva, tu tens asas, usa-as; oh, minha parva, tu levanta-me essa cabeça, e veste-me uma camisola amarela, e põe-me um baton nesses beiços e sombra nessas pálpebras, abre-me esses olhos como quem vê o caminho, e voa, mulher, voa.” Porque era isso que eu queria dizer-lhe. “Voa, mulher, ainda tens tempo, ainda está tudo por acontecer na tua vida”.

Não disse.

Digo agora. 




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