Buraco de sal e sol

Choro todos os dias. Choro muito todos os dias, na solidão da casa, e vou chorando ao longo das horas, lugares e pessoas com quem me cruzo.
Choro a cada esquina como uma beata que se benze de pudor. Choro para me lavar, me curar, me salvar das grilhetas que me não aceito. Ouçam, eu não aceito! E choro.
Choro por comiseração minha e alheia.
Choro porque perdi a minha mãe. Já tinha chorado quando do meu pai.
Chorei o meu pai  duas vezes por semana, noventa minutos ao todo, nem mais um minuto. Gastei lenços finos dos de limpar  lágrimas no psicólogo,  e ouvi muitos “sim?!”, “e o que pensa sobre isso?”, “acha mesmo?!”. Achava. Para além disso, pagava para chorar a um euro por minuto. Nos dias de hoje, com 90 euros semanais beberia quase uma centena de meias de leite ou 120 imperiais, é obra!; se fosse no meu café! Nos idos de 2002, renderia muito mais. Pergunto-me se fiz bem em gastar tanto dinheiro para chorar, quando uma pessoa chora tão bem sozinha.
As pessoas como eu não conseguem livrar-se dos papás, e depois choram. Têm o direito, mas é um gastar de tempo. Nada volta y todo cambia, como canta Mercedes.  Os papás são a sua homeland, porque a terra dos papás, que por força herdaram, não a aceitam: é um buraco sujo, lavado por sal e sol. As pessoas como eu emocionam-se por esse buraco fundo, torto e labrego, que odeiam e amam. Queremos os nossos papás, nossa inviolável pátria de carne, beijos, ralhos e respeito.
Choro todos os dias sentada na cama, quando me levanto ou deito. Seguro a cabeça com as mãos, pouso os braços sobre as coxas gordinhas e solto litros de boas lágrimas cultas, que me lavam as mãos os braços e a roupa. Choro no sofá. À mesa da cozinha. Choro quando estou a lavar o chão. São os meus pensamentos. “Para de ser trágica”, diz-me a terapeuta de reiki. Também lhe pago, mas muito menos. E se escavo para lhe pagar! “Para. Pensa em ti. Ri.” Eu paro. Rio. Penso em mim e volto a chorar tudo outra vez. Quando acabo, tenho a cara inchada e os olhos não enganam o feito. Deve ser a meia idade.
Choro porque ao anoitecer encontro um pombo solitário pousado na pequena cascata da fonte de Recoletos. Está velho e doente?!  São as suas últimas horas?! Nada posso fazer para o salvar! O pássaro abre as asas, voa para o alto e fico a vê-lo desaparecer no céu tinto de sangue aguado. Choro porque o pôr-do-sol é uma benção grandiosa e a escuridão da noite jazente expande a frescura dos jardins. Choro porque cheira a terra húmida, e os membros relaxam da exaltação do dia.
Choro porque a cadela velha morreu em sofrimento nos meus braços, quero esquecer, quero esquecer; não estou curada, por isso choro mais. Choro por saudades da cadela nova, da cadela terrível, da cadela teimosa, da cadela que me acompanha todos os dias e não cede, não cede. “Es como eu!”, digo-lhe. “Não fazes o favorzinho, nem um milímetro!”
Os meus amigos estão longe. Choro. Gente passa pela minha vida. Choro porque lhes dirigi palavras que as magoaram, ações que as desgostaram. Sou excêntrica e não sei ser outra. Choro por ser como sou.
Há a minha infância.
“Todos perderam a infância!” E acrescentam, “o passado não interessa, já passou”.
Faço-lhes um manguito.
”Não! Eu perdi mesmo a minha infância. Tu podes voltar à aldeia onde nasceste e ouvir tocar os sinos da tua imaginação. Podes rever os tios e as primas velhas, os tijolos rachados de uma antiga parede onde trocaste beijos incipientes, fumaste o primeiro cigarro ou masturbaste um rapaz às escondidas. Podes fazer tudo isso, enquanto eu posso chorar.”
O passado está em mim, à minha volta como um filme do Imax. Inatingível, contudo. Imaterial.
“Só te falta dizer I had a farm in Africa”, comenta Lúcio enquanto atravessamos de comboio uma zona de ferro-velho onde montanhas de metal esperam pela provável reciclagem.
“Isto é feio, esta parte da cidade”, diz.
“Não, não é”, respondo. “É normal.” E olho com muita atenção.
“Nunca tinhas visto?”
“Sim. Acho que sim. Tenho a vaga ideia de ter visto uns montes assim... em África, talvez... Em Moçambique ou na África do Sul.  Não sei, talvez em Portugal, quando vim... posso confundir lugar e tempo...”
“Só te falta dizer I had a farm in Africa.”
 “ But I didn’t.” Olho-o firmemente.
“Eu sei”.
Não, ele não sabe. Não faz a menor ideia. Por isso olho-o com intensidade, por ter ousado meter-se no que não lhe diz respeito, no que desconhece, nos seus lugarzinhos comuns pós-coloniais,  e repito, “ I didn’t”. E nesse momento apercebo-me de que tenho pena de não ter tido uma machamba em África, uma machamba mesmo a sério, e de não ter vivido em África o resto da minha vida, arriscando tudo. Só nós sabemos o valor do tudo que se arriscava.
O pai da Cecília sonha com África todos os dias. Estamos sentadas na rua Cândido dos Reis e eu digo-lhe, “isto, isto, esta tristeza, vês estas pessoas, esta miséria...” Interrompe-me, “Mas o que tinha aquilo?! Havia droga no ar? Vocês não se adaptam. É sempre a mesma conversa.”
Rio-me. Rio-me mesmo muito. Droga no ar?!
“Sim, havia!” Acho que é a resposta justa. "Havia uma droga chamada Oriente, Índico. Havia acácias, odores, havia muito a sul do Trópico de Capricórnio. Havia dias de chuva e humidade em que nada se via à frente. Cacimba pela noite. O ar aspergido de água mínima. Zínias de muitas cores e cravos de burro, laranja e amarelos. E caju e amendoim. Era droga, sim. Era um energia que fervia do chão e outra que caía do ar. Droga! Havia pretos que eram mesmo pretos. Pretos com medo. Pretos coloniais. Não eram estes que conheces dos bairros, enraivecidos pela discriminação, metidos no gueto, preparados para te tratar como branco que odeia pretos, apenas porque são pretos e se tem medo dos pretos sem motivo, e eles sabem-no, e dizem-to claramente, e com razão. Eu sempre procurei os pretos, aqui, conheço-os de todos os lados. Os outros eram pretos a quem podias apalpar os testículos, e se ficavam. Diziam-te, «ai, patrão, não faz isso, patrão», e riam, envergonhados. Pretos calados, humildes, conformados. Era horrível. Esse tempo era horrível, para eles, bem entendido, mesmo que não o soubessem por não irem à escola, não lerem, aceitarem a ordem natural das coisas como aceitaram a independência e o Samora. Não há que enganar. Foram tempos duros. Os brancos, depois o marxismo-leninismo, os campos de reeducação, não ao lobolo e à poligamia, não ao feiticeiros, não à suruma. Não a tudo. O colonialismo do Samora não foi lá grande liberdade para quem tinha acabado de sair dos brancos. Isso te garanto." Agora não sei.
Cecília olha-me com os olhos muito abertos. “Esta gente passa-se”, pensa.
“Mas eu entendo o teu pai, Cecília. Se esqueceres os pretos descalços e calados, havia droga no ar, sem dúvida. E nós trouxemos essa carência. Não podemos esquecer. Não há forma. Olha à tua volta. Isto não é o Jardin do Éden, mas ouve, escuta isto muito bem: Moçambique era o Jardim do Éden! Lá estava a Árvore da Vida e essa não nos era proibida, só a do Bem e do Mal. Foi essa que nos lixou!"
E ponho os óculos escuros e choro.
Às vezes procuro os óculos e não os encontro. Levo as mãos à cabeça e não estão lá. Tenho demasiados óculos, ao peito, na cabeça, na cara. Quando não encontro os óculos rapidamente, as lágrimas rolam-me rosto abaixo, gordas, e as pessoas notam.  Acho que toda a gente no mundo já me viu chorar. Contemplam esta bizarria e voltam a cara, pensando que tenho um desgosto de amor. Aceita-se muito bem o choro por desgosto de amor. Não se chora porque os pássaros vão morrer ou se perderam terras e papás.
Não são lágrimas, é a minha estigmatização! Não sangro das palma das mãos, são os olhos. Claro que há alturas em que penso que está na hora de parar. Encho-me de coragem. Sou forte. A minha terapeuta de reiki dá-me umas achegas sobre o que o universo espera de mim, ou melhor, sobre o universo que me cabe construir. Uma trabalheira! Mais vale uma pessoa afogar-se em imperiais e esquecer. Desistir é uma tentação tão forte. Viver por baixo de um viaduto, ao lado de pretos enlouquecidos por droga verdadeira, filhos de um império caído que não soube que destino dar-lhes nem dar-me. Irmãos! Mas, certo, faço-lhes a vontade,  vamos lá ser intrépida, enfrentar. Agora paro com isto. Certo. Faz de conta que a minha mãe não morreu. Está tudo igual. Eu, aqui; ela, em sua casa. Vamos encontrar-nos, quando regressar. Vai sorrir. Vou vê-la. “Olá, menina!” E choro.
Certo. Recomeço. Sou intrépida. Está tudo igual. Não lhe telefono agora, porque não é necessário ou porque a hora é imprópria. Está a ver o Preço Certo em Euros, e depois o telejornal e de seguida a novela. Só se aproveitar um intervalo. E ao pensar na sequência de programas, vejo-a mentalmente sentada no sofá do seu quarto, frente à tv, onde agora estão a minha secretária e as estantes com livros, e choro as lágrimas mais grossas que Deus inventou para que olhos se rasgassem de chorá-las.
Certo. Recomeço. Uma coisa é certa: com ou sem mãe, tenho de continuar a trilhar o caminho, diz a minha terapeuta. Digo eu. Tenho de ser normal  como uma pessoa que não pensa na falta dos papás, a sua terra-buraco; para quem a sua ausência não é uma ferida. Ser como aqueles que cresceram à pancada aos irmãos, esse horror de preparação para a vida, e aprenderam estratégias de desenvencilhanço que não lembram a uma pessoa bem formada. E dão e levam porrada com uma facilidade, e sem lágrimas, que assustam. Ou os que nunca conheceram os pais. Os que não viveram a doçura dura desse amor intemporal, incondicional, infinito. A doçura-prisão. Tenho de avançar no meu caminho singular, ao lado de outros, com as minhas feridas abertas ao sol, na esperança de que sequem. Não serei como os outros, isso eu sei, mas procurarei nesgas de céu entre os prédios ou as árvores.
Penso tudo isto. Paro de chorar. Limpo o rosto com a ponta da saia de algodão ou a manga da camisola ou a pele nua. Olho em frente, respiro fundo - os olhos como melões. Respiro fundo de novo, componho-me, apanho a roupagem de gente adulta que não desiste e triunfa. Não sei se é possível, mas, à cautela, faço-o, porque sabemos lá no que cada gesto vai dar? Visto-a como a um disfarce de carnaval, enfiando-a pelas pernas e puxando o zip no peito. Depois encaixo a cabeça de gente normal. A cabeça é a parte mais difícil de usar.

O choro lavou-me? O sal arrebita e desinfeta. Sinto-o na língua enquanto lambo os restos de lágrimas ao canto da boca, e sei que estou muito viva. É a única certeza que tenho.



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