Falhei a Filosofia

Não tive bons professores de Filosofia no secundário. Eram boas pessoas, mas não foram capazes de me entusiasmar com a matéria, ou o programa era muito desinteressante. 
Digo isto porque o secundário foi uma altura em que tive muito sucesso na escola. Obtinha as notas máximas para a altura. Estudava. Lia. Era realmente boa aluna, inclusive a Introdução ao Direito e Relações Públicas, secas de difícil equiparação no mundo cognoscível, mas não tenho boas recordações da Filosofia. Isto é muito curioso, porque toda a minha vida tem sido uma busca formal e informal da filosofia. Através dos textos de quem produziu pensamento, por um lado, e através dos textos que leio e produzo, por outro. 

Quando leio uma obra, interessa-me a sua filosofia e a das personagens. A forma como elas são. Tomemos Carlos da Maia como exemplo, porque é, em princípio, o pilar de um romance que todos leram. O que me interessa é contemplar as suas tomadas de decisão, de acordo com o seu livre-arbítrio. Sinto-me fascinada com as suas leviandades e incapacidades para resistir aos apelos do desejo. A forma como trata a Gouvarinho, a persistência no contacto sexual com Maria Eduarda, mesmo após conhecimento da existência de laços de sangue. O que é isso do incesto, afinal? Mas que importância tinham os laços de sangue, quando os unia um amor que a maior parte dos seres não encontra na vida?! Eu teria mandado o incesto para os quintos do inferno, e aqueles dois ficavam juntos; depois logo se via onde é que alguém falharia, porque o falhanço tem de existir, algures. As pessoas falham para compreender o acerto. E depois voltam a falhar e a acertar. A amputação desse amor não interessou ao Eça, porque não a trabalhou no romance, mas faz falta, muita mesmo, porque Carlos não falha na vida por ser um diletante e um romântico, como nos aponta o final, embora de facto tudo permaneça igual, e as culturas demorem a evoluir. 
Se passarmos hoje no Chiado, tirando os turistas, veremos a mesma exata paisagem. É um lugar de uma vacuidade impressionante. 
Carlos falhou porque se amputou no amor e na vocação, e fê-lo não por respeito ao que sentia, mas por necessidade de se conformar ao que a sociedade e a cultura esperavam. Carlos nunca quis ser médico. O seu avô, sim, desejou-o! Carlos gostava de discutir ideias, de escrever artigos em jornais, de analisar o mundo. Também havia um filósofo em Carlos. Portanto, falhou parcialmente, porque no momento em que o romance acaba é ainda demasiado novo, e pode acertar a seguir. Mas se falhou até ali, respeitando o ponto do vista do narrador, foi por não ter sido aquilo que estava talhado para ser

Tudo na vida desemboca em questões primordiais, de uma simplicidade que nos corrói quando o percebemos: o que somos nós? Porque somos dessa forma? O que fomos nós antes e nos levou a ser o que somos no momento em que nos pensamos? Como poderemos ser aquilo que sentimos que somos, em lugar do que nos ensinaram que deveríamos ser? Ou seja, resumindo, como podemos reconstruir-nos para regressar ao ser original? E é possível fazê-lo? 

Tudo o que me interessa na vida tem a ver com o verbo ser. Eu ser e os outros serem. E neste ponto sou profundamente exigente. É por isso que acho que, até certo ponto, falhei a Filosofia. Era o que deveria ter dito quando acabei o secundário: quero estudar Filosofia! E mentalmente, enquanto o escrevo e o imagino, sorrio, porque imagino os meus pais a levarem as mãos à cabeça e a caírem de desânimo no sofá, como aves atingidas pelo chumbo do caçador. Mas claro que depois se habituariam à ideia, porque me amavam, e o amor é uma força de verdade ilimitada. Eu sou a única responsável pelo que escolhi. Eu não sabia. Eu tinha dúvidas. E havia que pensar na vida. Queria provar-lhes que era capaz, que podiam orgulhar-se de mim. (Isso foi uma obsessão que ainda não terminou!) Nessa altura, embora tivesse já vivido muitas experiências, ainda era cedo para perceber o que era realmente o mundo. Ainda só conseguia ver com os olhos da cara, estes que agora vêm a falhar muito, e me obrigam a estar parada, com eles fechados, vendo tudo muito claro, muito claro.

Mas não é tarde demais. Falhei algumas coisas. Falhei-as até ao chão, porque sou boa nisso. Mas percebi, e, se me derem licença, vou agora acertar que nem uma louca de manicómio, que precisa de camisa de forças para não partir as paredes com a força do seu arremesso. Mas sem a camisa de forças.






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