O deus da arte



Eu e Dureza tínhamos tido um caso intermitente nos anos oitenta. Nada de especial. Paixão sem fogo da minha parte. Sexo, isso sim. Da sua parte, sem fogo. Depois tornaramos amigos. Tínhamos vidas bastante separadas e íamos sabendo um do outro, embora não partilhássemos o mesmo ideário, digamos... espiritual.

Quanto a política, continuava a ser possível discutir um ou outro ponto, enquanto ele não se encharcava em cerveja ou qualquer outra fermentação alcoólica, ficando totalmente toldado, irracional, incapaz.

“Temos de ir. Pega na tua mala  e seguimos para o aeroporto.  Estamos em cima da hora. “, disse-me Lia, a organizadora. "Volto já". E saiu.

Eu tinha sido convidada para uma conferência sobre literatura de género e pós-colonial em Atenas. Na mesa encontrava-se João Cláudio, excelente escritor, com obra estudada na escola, portanto sem registo discursivo impróprio para alunos: nada de referências sexuais explícitas, gíria ou calão, sobretudo o último. Boa pessoa, enfim!, mas um antipático pretensioso, que me suportava, e eu por igual.

Enquanto pego na mala, de costas para mim, João Cláudio  arruma os seus papéis, e diz-me sem se virar, “Sabes, o José Manuel Dureza morreu.”  Escutei, não querendo acreditar.

 “Não morreu nada.  Como morreu, se tenho conhecimento de que ainda há meses saiu de Portugal para ir escrever sobre a vida na Patagónia?!”

“Morreu.  Suicidou-se. “

Disse-o sem se virar. João Cláudio não sentia pena de mim nem de José Manuel Dureza.  O que de facto senti que me estava a dizer era, “eliminaste um concorrente. Este não te fará mais sombra, não te preocupes”.  Seria o que pensava, mas estava errado.  Talvez o seu discurso espelhasse a forma como ele próprio encarava o mundo, mas pela minha parte só me ocorria como resposta, caso os subtextos a pedissem, que não andava aqui a eliminar concorrentes.

Para mais, o Dureza não podia fazer-me sombra. Éramos de universos mentais diferentes, portanto procuravamos realidades distintas. Tínhamos andado juntos na escola. Dureza sempre desejou ser um escritor famoso e abdicou da “escravidão ao sistema” em nome desse objetivo. Eu vinha de outro meio,  do lado de quem sabia que para viver há que trabalhar  duramente, que da literatura não se come. Sabia também, algo inconscientemente, que aos vinte e aos trinta é cedo para escrever. Não para se ir escrevendo. Aliás, isso não adiara a minha carreira até este momento, em que a assumira como principal forma de vida, mandando o “sistema” ao diabo, arriscando a sobrevivência, ou, mais grave ainda,  a dignidade. Foi a vida. O temor ao caos. Os nervos. A necessidade de não andar de casa em casa, de insegurança em insegurança. Isso ele sofreu, para se tornar num escritor que rapidamente se apagara por falta de talento, não de tema.

Dureza tinha muitas histórias para contar, histórias divertidas, cruéis, mas fora perdendo o coração ao longo dos anos. Refiro a pureza do seu coração. Alguma vez a tivera? Eu não sabia. Mas Dureza sentava-se ao computador e não saía o jorro, a urgência de criar. Era um texto forçado, sem fluidez, sem alma. Dureza pagava o preço da sua involuntária vileza. Do que o destino tinha escolhido para si ou ele para seu destino. Tudo tem um preço, não nos iludamos.

Eu tinha decidido apagar-me pelos meandros de uma carreira louca de internato médico. Tinha turnos, trabalhava dia e noite. Ia para casa pensar nos meus doentes. O meu trabalho ocupava integralmente o espaço da minha vida. Inclusive a pessoal e privada. Mais do que médica, era um anjo que salvava almas, 24 sobre 24 horas. Houve momentos, ao longo dos anos, em que o anjo médico se esgotara e mandara tudo à merda. Arranjem-se sem mim! Quero lá saber! Que se fodam todos!

Depois descansava uns dias e retomava, até ao dia em que quis provar a si próprio a capacidade para outras valências.

Desconhecia o que José Cláudio poderia saber sobre o meu passado com Dureza, e a que ponto isso lhe interessaria, mas a forma como a notícia saíra da sua boca continha ironia maldosa. “O teu rival morreu, agora podes brilhar”, pensava ele. Que feio! Sim, eu queria brilhar, sem dúvida, mas Dureza não era meu rival. Peguei na mala à pressa, e saí da sala de conferências, procurando uma casa-de-banho para me refugiar, chorando sem controle, porque Dureza se tinha perdido antes de morrer, mas agora perdera-se objetivamente. Não sentia sentimentos de afeto por ele. Chorava pelo nosso passado? Chorava por ele, pelo que se tornara?

Revi tudo o que lembrava sobre José Manuel Dureza.

Ultimamente encetara uma descida ao inferno. Pedira para passar uma semana num matadouro. Via os animais serem descarregados, entrarem no lugar onde esperavam para serem sacrificados. Gostava de os ver morrer. Não sentia nada. Tanto lhe fazia que os matassem com eletrochoque, como à paulada, com o espicho no coração. Havia nele um fascínio pelo momento da morte, em que a bruteza do ser se acalma. Esperava que pendurassem as carcaças na linha de montagem da preparação para o talho. Via-as serem separadas ao meio com uma serra elétrica, via estripá-las, o sangue a jorrar para o chão e pelos braços do operador. Não sentia nada.

Procurava matança privadas do porco. Participava nos rituais.

No campo, pedia às velhas que matassem coelhos à paulada, que cortassem pescoços às galinhas que lhes comprava. Queria ver primeiro, e depois comia e bebia até à satisfação, até estar cheio, até cair. Engordou muito. O seu corpo crescera demais, à medida que a sua alma se ia perdendo. As mulheres conseguiam ver e aconselhavam-no a arrepiar caminho, a arranjar uma mulher, mesmo que não quisesse filhos. A ter um poiso, uma paz sua. Ele ria-se. Masturbava-se. Ou alguém o fazia por si. Ou ele o fazia a alguém,sem se preocupar em ver-lhe a cara, saber-lhe o nome.

Eu não dizia nada. Seguia o seu percurso sem uma palavra, sem compreender como alguém se transforma num carrasco cúmplice de carrasco. Tentava não julgar. Aceitar. Era difícil. Uma descida aos infernos não se procura, encontra-se. Ele procurou-a. Talvez esteja enganada. Talvez a tenha encontrado. Havia tanto sobre a sua vida que eu não sabia, apenas intuía, pelas imagens e trancrições que colocava no blogue, nunca as suas palavras. O seu blogue era uma coleção do trabalho de outros, não mostrava o seu. Na minha opinião, ele tinha medo de o mostrar. Já não acreditava. Mas essa coleção de imagens e textos era a sua autobiografia. Ele estava naquilo, e eu podia vê-lo.

Sim, tinha-se perdido. E eu tinha uma explicação incipiente. Ele entrara por vaidade num território do espírito. Fizera-o para seu ganho, não por absoluta necessidade ou missão, e assim traíra o seu coração e o do mundo. A arte é um cemitério de fantasmas vivos, ativos. A arte é uma oração rezada com desespero, angústia, raiva, esperança, não uma construção para se exibir, como um prédio alto. Há livros escritos que podem nunca chegar a pertencer a uma biblioteca, e contudo são produto do trabalho da arte, e pertencem-lhe. A arte é, nesse sentido, uma prática religiosa, e o deus da arte não se deixa enganar. Ele sabe muito bem se o artista é devoto ou finge sê-lo. Dureza fingiu. Poderia ter sido desenhador, tinha jeito, mas escritor, não. E pagava caro.

Esta era a minha teoria romântica.

Enxuguei as lágrimas. Voltei atrás. Subi as escadas a correr, em direção à sala de conferências.  João Cláudio encontrava-se sentado à espera que Lia nos viesse buscar.

“Mas suicidou-se como?”, perguntei-lhe.

“Deixou-se comer por leões. Viajou até África. Pegou numa mochila, meteu-se no mato e encontraram o seu cadáver devorado há dois dias.”

Fiquei em silêncio, boquiaberta, olhando João Cláudio.

Que forma requintada de se morrer!

“Mas há mais”, disse-me, “sabem que pagou a um feiticeiro que lhe cosesse por dentro da pele do estômago um amuleto do mal. Queria morrer com o amuleto do mal cozido nele, e pretendia que os animais que o devorassem, engravidassem desse mal e nele se transformassem. Acho que os animais foram caçados, o amuleto estava num dos buchos, e as  tribos queimaram a caça. Eram a semente do mal.”

“Eu não sei o que dizer disto, João Cláudio. Essa história está demasiado elaborada. Se a escrevêssemos seria inverosímil”, disse-lhe.

“Não sei, chega uma altura em que o inverosímil  se torna verosímil, não achas?!”

“Sim. Mas essa morte…”

“Sabes, foi a vingança dos animais cuja matança ele testemunhou. Os animais vingaram-se.”

Voltei-me. Lia apareceu. Encaminhou-nos para a carrinha que nos levaria até ao aeroporto. Segui pensando no assunto. Esperava-me uma longa viagem na qual pretendia escrever a história de Dureza. Os animais não se vingavam, mas a justiça do invisível vingava-se em seu nome? Não podemos participar na iniquidade, não podemos tolerá-la, sobretudo não podemos deixar de sentir. Quando deixamos de sentir já estamos mortos, Talvez Dureza soubesse que já tinha morrido.
Lembrei-me do passado. Revi a sua vaidade. Talvez nesse tempo antigo ele já estivesse morto. Eu pensava que a vaidade fosse uma coisa da juventude, uma coisa passageira, mas talvez a morte de Dureza já estivesse decidida nesse momento.

Tinha de pensar melhor no assunto.

Mensagens populares