O leitor normal de cemitério


O que é este monte de carne animada que sou? Porque me comovem as ações simples e me importa a vida das formigas, que vagueiam como tontas, até que encontram o seu buraco no chão, não sei com que faro? Porque paro a olhar folhas de plantas? Verdes. Secas. As cores na natureza, tão diversas. Os seus pequenos ruídos. Os insectos, répteis e mamíferos que se escondem nos arbustos e restolho quando passo. Tudo.
E no café, as frases que se soltam das mesas, ouvidas sem contexto, ditas com ironia, maledicência, zanga ou mesquinhez. O mundo está tão cheio de informação muda e falante que me interessa e comove.
Quem sou eu? Porque fui como sou até ao dia de hoje? E o que quero, agora?

A minha amiga R. disse-me que o ideal seria eu almejar um prémio literário de grande valor pecuniário. Atirei uma valente gargalhada, mesmo sentida,  e respondi-lhe, “por amor de Deus, mas tu não percebes que quem escreve como eu não ganha prémios literários?! Não escrevo histórias de família. Eu sou mais do género passa-fome, como o Luíz Pacheco ou a Adília!” 
É a verdade. Não escrevo sobre os grandes assuntos importantes: o mal, as intrigas do mal. Não conheço e não quero conhecer. Não escrevo histórias com enredos enlevantes. Escrevo sobre assuntos que não interessam a ninguém, por exemplo, sobre os lugares onde enterrei os meus cães. O que cresceu lá, depois. Escrevo sobre coisas em que não se repara ou sobre que não se fala. Acho que escrevo sobre o sentido das coisas que existem, das ações que se realizam. Sobre o que sentimos e o que fazemos com isso, mas não sou uma escritora no sentido tradicional do que se espera da narrativa. 
Portanto, para onde vou agora, não é?!

Não sei, juro. Ainda por cima tenho os olhos completamente gastos, forçados pelo trabalho e pela insónia. Eu que tinha uns olhos tão bonitos! E o meu corpo envelhece a pouco e pouco. A juventude vai. Nos últimos anos sinto-a partir descaradamente.
Assisti à degradação física do meu pai e da minha mãe. Vi o decair dos corpos. Conheço os sinais muito bem. A pele amolece. O sorriso esmorece. As prioridades mudam. Ter força, ter saúde, isso sim. Quais olhos bonitos! Quem é que quer saber de uns olhos bonitos quando o que interessa é ser capaz de ir até à cozinha preparar uma sopa? Descascar os vegetais, cozê-los, esmagar os que têm de ser esmagados, ter cuidado com o gás, o lume, lavar a louça. E quem vai à loja comprar aquilo de que precisamos, e o carrega?
Ter força. Ter saúde. Persistir. Isso importa. Os olhos bonitos pertenciam à juventude. O corpo gordo, bem gordinho, também. Tinha apetite. Um dia lembro-me de a Sandra me ter dito, no restaurante, ia eu para a segunda coxa de frango, “ainda não encheste esse bandulho?” Era uma censura, mas aquilo teve graça. Rimo-nos muito. Comi a coxa. Comi muitas. Eu tinha sempre muito apetite, ao qual gosto de chamar fome, no sentido simbólico. Era uma voracidade que não desapareceu, apenas se transformou. Era uma insatisfação que não desapareceu. Era o que me faltava, e continua a faltar, e talvez comece a ter uma ideia, agora, sobre a natureza dessa falta. A comida sossegava o estômago e a mente, que estavam ligados. Acalmava, atordoava e saciava um pouco, como o álcool. A comida, que bom! Tenho esse prazer registado na minha mente. Nunca o perderei, eu sei.
Uma vizinha parou-me numa das muitas escadas do bairro e interpelou-me, “gostava de lhe perguntar uma coisa: a senhora é a mesma pessoa... desculpe, a senhora é aquela vizinha que era muito gordinha, não é?! Pela cara parece, mas mudou tanto! A cara é que parece a mesma, não mudou nada.”
“Sim, sou eu. Sou a mesma pessoa”, respondi. Mas a cara mudou. Ela não percebe, mas eu sei, eu vejo. A cara perdeu juventude. E mudou conforme eu fui mudando.
Esta é a vizinha que trago atravessada há muitos anos, por ser do meu conhecimento que, não sabendo o meu nome, costumava designar-me como “a gorda” ou “a gorda das cadelas”. Eu era gorda, bem gorducha, e tinha cadelas. Nisso estamos de acordo, mas vamos lá agora ao tom depreciativo da nomeação! Eu tenho um nome, e as pessoas a quem ela se dirigia conheciam-no, ou, pelo menos, sabiam outras coisas a meu respeito. Podiam designar-me pela profissão, pela marca e cor do carro, pelo prédio em que vivia. Mas preferiam chamar-me “a gorda das cadelas”. Ficou aqui atravessado. Ainda está. Éramos todos adultos, portanto não se percebe.

Dizem que as pessoas são naturalmente más. Eu não acredito. Sinto-me ofendida quando o pressuposto me é dirigido. Não me sinto bem em lugares onde percebo que estou a ser vigiada, porque se parte do princípio que poderei roubar ou destruir algo, como em lojas ou em exposições. Desejo vir-me embora depressa. Pertenço ao género de pessoas que nunca escreveu uma palavra numa carteira da escola, podendo, ou numa porta de casa-de-banho pública. As carteiras da escola e as portas da casa-de-banho não me pertenciam, e eu fui ensinada a não tocar no que não me pertencia. Sou do género de pessoas que pode ser deixada sozinha numa casa alheia e não abre uma porta nem uma gaveta, por o julgar um considerável desrespeito pela privacidade. Não é que a privacidade não aguce a minha insaciável curiosidade, mas ela deve ser-me oferecida ou devo aceder-lhe por meios que não ofendam a forma como fui construída.
Quem sou eu? Como fui construída?      
              
O Estado pagou-me uma dívida. É raro, mas acontece uma vez em cada lustre. Assim que notei o montante depositado na conta bancária, levantei-o, não fosse cair a prestação do hediondo cartão de crédito. O dinheiro que os bancos emprestam sai sempre muito caro, convém esclarecer. Há uma altura em que perdemos a paciência, e a minha vai a anos-luz. Tinha prometido a mim mesma que o primeiro dinheiro que entrasse, serviria para comprar a lápide da minha mãe, e que tudo o resto, sem qualquer respeito pela importância da dívida, deveria esperar.

Levantei a maquia e dirigi-me ao cemitério, ao homem que vende flores, que é o mesmo que vende lápides.
Já antes tínhamos conversado sobre os custos e aspeto da pedra, por isso informei-o de que mantivéramos uma conversa anterior, e passei-lhe para a mão uma folha A5 na qual tinha escrito o que pretendia que ficasse registado. O nome completo da minha mãe, a sua data de nascimento e de morte, e duas frases da minha autoria. O homem leu as frases alto, na minha presença, e senti-me envergonhada. São frases privadas, embora com destino público. Quando as escrevi, pensei nisso, mas não foi fácil ouvi-las ler. Foi como se o homem estivesse a ler um bilhetinho que eu tivesse escrito só para a minha mãe. Leu e disse, “muito bem”.
Calei-me.
Perguntou-me, “não quer acrescentar nada?”
Respondi que não.
“Não quer pôr «À memória de», antes do nome dela?”
“Não.”
“E um «Descansa em paz»?”
“Não! É só o que escrevi nessa folha, está bem?!”


Passei por várias fases relativamente ao meu primeiro impulso de escrita do texto da lápide, pensando exatamente que aquela mensagem privada era também pública. Pensei no que lhe queria dizer, ou seja, nos sentimentos que nos ligavam, no que fomos uma para a outra, e no que pretendia deixar registado como essencial. Tinha de ser uma mensagem muito sucinta. A primeira frase era sobre isso: o amor. Escrevi “o nosso amor não carece de espaço nem de tempo”. Soava-me bem, mas depois pensei que o leitor normal de cemitério pode não abarcar o significado de “carecer”. Mudei o verbo para “precisar”. “O nosso amor não precisa de espaço ou tempo.” Soou-me mal. Ocorreu-me que poderia resolver a situação usando um verbo estativo, uma vez que o amor permanece, embora gerasse uma frase comum, mas paciência.  “O nosso amor está para além do espaço e do tempo.” Não me agradava a locução “para além de”. Preferiria um beyond, mas sem dicionário de sinónimos não me vinha nada à memória, de maneira que ficou o lugar-comum, para ser fiel ao sentido do conteúdo e de fácil compreensão para o leitor comum de lápides de cemitério. É uma frase batida, mas a informação respeita o que sinto e penso, e o que quero que o leitor compreenda.
O homem queria meter uma vírgula a seguir a “está para além do espaço”, mas eu, literalmente, gritei-lhe um não. E aproveitei para, com muita firmeza, fortalecendo o tom da voz, apontar as vírgulas da frase seguinte e enfatizar “não foi por acaso que as sublinhei; são para respeitar tal como estão, certo?!”.
Eu sei o que os homens que trabalham com pedras fazem às vírgulas, e não gosto. Previ tudo.
“Certo, certo”, respondeu ele. Depois olhou para a fotografia da minha mãe e disse, “Eu acho que conhecia esta senhora...” Não lhe respondi. Não encolhi os ombros, nada. Houve um silêncio. Pensei apenas, “há tantas senhoras parecidas”, e o homem não insistiu. E, de facto, a minha mãe era uma “senhora parecida”, o que tem a sua graça, porque era uma mulher muito mais sábia do que eu, muito mais evoluída do ponto de vista do que respeita à existência, mas ninguém dava por ela. Não se notava. Era uma suavidade sem insistência, enquanto eu sou do género “olhem para mim, ouçam-me, agora vou fazer isto e mais aquilo, e berro, se for preciso, e parto, e espanco, e tomem atenção”. Ela não. Não precisava de nada disso. Estava centrada naquilo que tomava como certo e perfeito e nada a desviava do seu caminho. Pouco foi à escola, pouco leu. Garanto que não devorou grandes autores, e se assistiu a grandes filmes foi por acaso, arrastada por mim e pelo meu pai. No entanto, tudo o que eu sei, ao seu lado, é nada. Eu que a injuriei, que lhe chamei burra por não saber onde ficava a Noruega. A burra continuo sendo eu, e tenho muito caminho a percorrer para um dia poder chegar-lhe aos tornozelos.
A segunda frase tinha a ver com esta ideia, para mim hoje muito clara, de que a minha mãe foi uma pessoa muito melhor do que eu sou, e do que eu a julguei. À distância, e na falta, percebe-se. A minha mãe perdoava. A minha mãe sabia pedir perdão. A minha mãe sabia dar a outra face, e dava-a. Sabia esperar. Sabia não ofender, não magoar ninguém. Por muito que procure na minha memória algo para lhe apontar, uma má palavra sobre alguém, não encontro. Havia sentenças, sim, que com o tempo se vieram a revelar certas. Tem cuidado com isto ou aquilo, e eu desdenhava e atirava-lhe um “lá estás tu”. Ela sabia as coisas antes de acontecerem. Como se já tivesse vivido aquela situação ou pessoa. Ela era sábia. Eu, apenas sensitiva. Uma aprendiz sem jeito nenhum.
A segunda frase tinha a ver com a ideia de ela ser um farol, e eu, alguém que teve origem em si, mas não passa de seu discípulo insubordinado. Escrevi-a, igualmente, em benefício do leitor de cemitério, para ser civilizada. A ideia da insubordinação ficou apenas na minha mente. Há coisas que não se podem inscrever numa lápide do cemitério do Feijó. Reparem, não é o cemitério dos Prazeres nem o de Montparnasse. Não temos ali sepultado nenhum Baudelaire nem nenhuma Marguerite Duras. Temos de nos adaptar ao público. Ainda no outro dia li por lá uma citação bíblica extraída de Job, e juro que não ficou clara, para mim, a intenção de quem mandou escrever aquilo. “Ainda cá hás-de vir ver as tuas obras e terás saudades delas”, era mais ou menos isto. Terás saudades das tuas obras? Quais obras? As pessoas? As acões que fez? Expliquem-se, sinceramente, porque não se diz isso a um morto. Ninguém quer morrer, quanto mais ser lembrado, na morte, do que deixou. A não ser os que querem mesmo morrer, mas isso é um outro departamento ao lado da vida e da morte. Deixem os mortos em paz.

Mas o que interessa saber, neste momento, é para onde quero ir agora. 
Para onde vou?! Para onde vou agora?!


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