Estou só aqui à espera

Eu às vezes escrevia para me aguentar viva.
A vida pesa à vontade os quilos todos de um frígorífico, de uma  máquina de lavar roupa, ou de um móvel aparador de sala, mas tinha dias. Havia dias em que não pesava tanto ou não pesava mesmo nada, e me sentia uma semente que flutuava, levada pelos ventos.
Nesses dias devo ter sido uma semente levada pelos ventos.
Às vezes, pensava “ eu não aguento” e ia escrever qualquer coisa. Escrevia a história de um homem que se oferecia para arrendar parte da casa para ajudar um outro que tinha de entregar a sua ao banco ou o episódio das sandálias de salto alto que o meu pai, aos 10 anos, me comprara na 24 de julho, contra vontade da minha mãe, para quem três centímetros de salto eram um incentivo ao caminho da perdição. Escrevia sobre conversas que ouvia na mesa do café, tal e qual como as ouvira, ou introduzindo elementos especulativos, morigeradores, manipulando a irrealidade. Eu não aguentava a vida porque a sentia irreal. Tinham-me metido num jogo que me via obrigada a jogar sem lhe ver o fim ou o sentido. Por isso, escrevia. “Estou aqui sentada e entornei parte do café no pires.”
Sem escrita a vida não tinha para onde continuar a ir. A estrada acabava ali. O pôr-do-sol perdia a magia. O ruído colossal das marés de setembro esvaziava-se. Sem escrita não tinha uma casa onde chegar, tirar o casaco, pendurá-lo, cumprimentar o cão, levá-lo à rua, regressar, alimentá-lo, sentar-me no sofá e apreciar o gesto. Podia viver sem tomar banho, sem fortuna, filhos, beijos, mas sem escrita era difícil. Ninguém entendia isto. Nunca ninguém entendeu, e diziam-me, “cala-te”, e viravam-me as costas como se referisse uma patologia indesejada, um vício de gente abastada que se pode dar a luxos. “Estás maluca”. A minha vida era um jogo que deveria viver sem luxos que não me eram exigidos, porque era a minha. “És maluca”.
Houve uma altura em que isto se tornou tão claro que precisei tapar os olhos. Eu queria compreender, mas a compreensão é o pior dos castigos. Nunca mais conseguimos ignorar a jaula e o jogo, porque não é possível regredir quanto ao que se viu.
Acordava com dificuldade e escrevia para me aguentar, dia após dia, mesmo que nada tivesse a dizer. Escrevia, “sinto-me perdida” ou “estou nos setenta e quatro quilos e não dá para emagrecer mais”.

Escrevia, por exemplo, “estou só aqui à espera”.


Marguerite Duras



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