Os vagabundos

O mês passado, uma jovem amiga apercebeu-se, dias antes das férias, que tinha deixado caducar o bilhete de identidade. A sua primeira reação foi o medo da multa. Quanto iria pagar de multa? Provavelmente, esse valor seria tal que a impediria de gozar as férias. Dirigiu-se à Loja do Cidadão constrangida, apertada de medo, desculpou-se perante a funcionária, e quis então saber o montante da multa, o que a preocupava. 
A funcionária olhou-a, fez uma pausa enquanto pensava, e respondeu, "multa?! Acho que não há multa."
À cautela, não lhe tivesse passado ao lado alguma portaria, despacho ou circular, voltou-se para a colega do guichet ao lado e perguntou, "oh, Maria Emília, sabes de alguma multa para quem venha revalidar o bilhete caducado?" Não havia. Agora acrescento eu: por enquanto. 
Ouvindo o relato na minha amiga, percebi que as gerações mais novas já assimilaram que o cidadão é culpado à partida e que a sua penalização não só é uma inevitabilidade, como pertence à ordem normal das coisas. As gerações mais novas já estão moldadas segundo um modelo ao qual eu escapei, Eu vivi em tempos que, não sendo perfeitos, eram mais justos. Portanto, eu estou na fase do choque profundo; aquela em que se questiona que um cidadão tenha de pagar 15 euros para revalidar um documento de identidade. Aquela que me dá a certeza moral de que não temos de pagar para nos podermos identificar perante as organizações, porque cabe ao Estado proceder a esse serviço: reconhecer os seus cidadãos e providenciar para que eles possam comprovar quem são.
E vou ainda vou mais longe: estou na fase em que sei que não temos de pagar um cêntimo para ter o direito a existir, e na qual considero que a atitude do vagabundo, do sem abrigo, é a única coerente com o autoritarismo dos diversos sistemas políticos e económicos. Eles não foram atirados para a sua aituação. A sua situação é o acúmulo de um somatório de recusas. E é nela que encontro a coerência.

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