Quem manda
O meu corpo é o meu marido e andamos brigando sem tréguas
desde a adolescência. Há dias em que o detesto, o insulto e nem o posso ver ou sentir; outros em que não
reparo, deixo-o estar para ali como se não tivesse vindo ao mundo, e momentos em
que amo esse contentor de carne, infinitamente, e é um amor puro e
indissolúvel.
Chamo-lhe marido porque o meu corpo é uma outra pessoa
dentro de mim. Ele não pensa como eu, não me obedece, ri de mim, troça mesmo e
não consigo vergá-lo. O meu corpo quer ser gordo e não adianta eu explicar-lhe
que não tem vantagem nisso, que mais vale mudar de comportamento. Não desiste
de ser aquilo que é. É convicto.
Tenho ficado muitos momentos parada só a contemplá-lo, para
poder entendê-lo, se conseguir ver com os seus olhos.
Quando fiz a gastrectomia, julguei que lhe tinha dado o
golpe final. Sofri para seu bem, e meu,
porque estava cansada de o carregar, cansada de desobediência. Joguei o nosso futuro nessa gastrectomia. Planeei a mutilação do meu corpo para me
libertar . Liberdade. Vou escrever outra vez: liberdade, liberdade, liberdade.
Liberdade. Eu quis ser livre dele, porque isso me libertaria. O meu marido
constrangia-me física e emocionalmente. Não o aguentava e tinha vergonha de
andar com ele na rua. As pessoas riam-se dele, porque são cruéis e não aceitam
a diferença, nenhuma. Eu própria não o aceitava, porque tal como as pessoas com
as quais me cruzava, eu também fui ensinada a aceitar o normal e a rejeitar o
anormal. Lutar com uma pessoa que anda
agarrada a nós todo o dia, e não descola, não é pêra doce.
Eu batia em mim e chorava, olhando para as calças que já não
me serviam. Não aguentava mais, e fui
pensando intermitentemente na amputação do estômago até me decidir. Hesitava. Depois parei. Parei mesmo e atirei-me do precipício sem querer saber o que ia acontecer a seguir. Sentia-me gasta. Acabou. Não penso mais. Vou. E disse-lhe, “agora vais ver quem manda aqui”. Foi assim. De um dia para o outro.
Sim, quero fazer a gastrectomia. Sim, quero passar uma
semana sem comer nem beber e depois um mês a caldo e iogurte, e, na verdade, o
resto da vida, como se veio a ver.
O meu marido levou um abalo tremendo. Ele não esperava que
eu tivesse a coragem. Foi surpreendido logo de manhã. Levaram-me para a sala de
operações e zás. Tchauzinho. Quando acordei, senti de imediato a ausência do
estômago e levei a mão ao lugar onde costumava estar inteiro. O que restava
dele doía. Fui cuspindo saliva e sangue, quase me sufocando neles, e pedia ar,
ar, ar. Queria respirar com os meus pulmões, voltar à vida. Pensava “o que é que eu me fiz? E agora, como
vou viver?” Só queria a minha mãe, que estava em casa esperando notícias,
respeitando a minha vontade, concordando que a amputação era o melhor, porque
eu tinha de controlar o meu marido.
Quando estou em apuros quero sempre voltar à mãe ou ao pai
ou a um refúgio seguro: eles. Quero os braços do meu pai e a sensatez da minha
mãe, porque ainda não sei viver sem essa caverna boa. Todos os dias me forço
para andar, dizendo, “dói, mas tem de ser, tens de ir, vá, vá lá, tens de ir, vamos”. E
dói, dói, mas vou cheia de dor, e queixo-me. Grito alto ou
baixo. Gritar alto é melhor.
A minha mãe estava à espera.
Alguém lhe disse que tudo tinha corrido bem. Eu estava recortada e manchada de sangue, mas respirava sozinha e estava para ali sem saber nada, com uma única certeza: quem manda sou eu. E o meu corpo a piar fininho. Queitinho. Arrumadinho. Dobrado sobre si. Eu pensava, “toma!” Mas quem julgava ele que eu era?! Pensava poder fazer de mim o que lhe apetecia?! Pensava que o ia aguentar a vida inteira?! Ah! Julgou-me muito mal, o filho-da-mãe impertinente, desobediente. Subestimou-me. Afinal ele não conhecia assim tão bem a mulher com a qual se meteu.
Alguém lhe disse que tudo tinha corrido bem. Eu estava recortada e manchada de sangue, mas respirava sozinha e estava para ali sem saber nada, com uma única certeza: quem manda sou eu. E o meu corpo a piar fininho. Queitinho. Arrumadinho. Dobrado sobre si. Eu pensava, “toma!” Mas quem julgava ele que eu era?! Pensava poder fazer de mim o que lhe apetecia?! Pensava que o ia aguentar a vida inteira?! Ah! Julgou-me muito mal, o filho-da-mãe impertinente, desobediente. Subestimou-me. Afinal ele não conhecia assim tão bem a mulher com a qual se meteu.
Na enfermaria, a doente da cama ao lado ia almoçando,
lanchando, jantando, os dias todos, e eu virava a cabeça e desejava que
tivessem inventado um comprimido para anestesiar o odor. O meu corpo sentia-se
desesperado de fome e de sede. Tinha pena dele, mas já não estava nas minhas
mãos. Não havia nada que pudesse fazer para o salvar. Dizia-lhe, “aceita o
destino. Tens de te conformar. Não pode ser como queres.” Ele, coitado, chiava,
e eu sentia, porque os esposos se conhecem como se tivessem nascido do
corpo mútuo.
Ao quinto dia, o médico deu-me alta e vim para casa com o resto do meu corpo nas mãos e cinco buracos no abdómen.