A coisa

Foto: @Paulo Sérgio Beju


Quando trabalhei no Diário de Notícias era muito jovem. O meu trabalho não se via. Os outros percebiam que havia ali uma destreza, uma falta de medo e vergonha do texto, mas eu não dominava as técnicas do jornalismo, e quem me ensinou tudo, se é que se aprende tudo, foi o Manuel Rosa Dias, grande jornalista, filólogo e amigo.

O Natal, para mim, acabou em 22 de novembro de 1975, o dia em que levantei voo do aeroporto do Maputo para nunca mais regressar. Poderia pensar-se que o Natal voltaria a sê-lo, quando 10 anos depois os meus pais regressaram, e de novo nos juntamos enquanto agregado familiar, mas nessa altura eu já me encontrava estragada pela resistência, pela espera e pelo silêncio.
Os meus pais morreram sem saber que o dia 22 de novembro de 1975 alterou, não apenas o percurso da minha vida, e para meu bem, nunca o questionei, mas todo a ordem e sentido do mundo que me estava destinado a partir desse momento.

No Diário de Notícias, quando chegava o Natal, encarava com inveja benigna os jornalistas escalonados para trabalhar na noite de consoada e no dia que se lhe seguia. Lá no meu cantinho de jornalista sem importância, fantasiava com a altura em que, também eu, em glória, haveria de aparecer numa lista qualquer para estar ao serviço nesses dias e escapar-me ao que me foi roubado. Que perfeita e legítima desculpa para fugir à penosa tradição do bacalhau, das prendas, da família, das luzinhas, todo esse baile de Carnaval! Nunca tive a sorte.

Tenho Natais em que fantasio que sou motorista da Carris ou que trabalho no Metro de Lisboa, e mais ninguém aceita o encargo dos dias 24 e 25, a não ser eu. É uma alegria.

O Natal ainda é a data em que tenho de me confrontar com aquela coisa que me foi extirpada, que perdi, que deixei, que me caiu, que se desencaixou, que fugiu no dia em que saí do Maputo. Essa coisa, não a reconheço, não a identifico, por isso não consigo encontrá-la em lugar algum, para a mandar reparar.



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