Este é o meu corpo

Peter Paul Rubens


Este Outono decidi mandar apertar um casaco de quando era gorda.
Quando se emagrece quase meia centena quilos é natural ter de renovar o guarda-roupa à força.
Comecei por deitar fora o velho, dei as peças que estavam em condições, e apenas guardei algumas de que gostava muito, com a esperança de as mandar apertar. Desde essa primeira intenção, voltei a dar roupa, de entre aquela de que gostava muito, até me sobrarem apenas alguns casacos de abafo, que mantenho guardados.
Precisei,  o mês passado, de um casaco bom. Sondei o mercado, mas verifiquei que os preços estavam muito acima das minhas possibilidades, portanto decidi-me pelo arranjo do que tinha armazenado.
Com o advento dos centros comerciais deixamos de ter costureiras com atelier montado numa assoalhada da casa própria, onde nos deslocávamos várias vezes ao longo do processo de confeção.
Recebiam-me sempre com certa contrariedade, cheias de encomendas e não sei quandos, sentadas junto à máquina de costura ou à mesa de corte, com as tesouras, as linhas, os alfinetes, as agulhas e restos de tecido espalhados, fatos de outras clientes pendurados em cruzetas por todo o lado, e iam-me respondendo com distância e indulgência, sem levantar os olhos do trabalho, normalmente para me dizerem algo como “não sei se isso lhe assentará bem ao corpo”.
Fui assim percebendo que não tinha um corpo agradável nem fácil para a técnica da costura. Eram as pinças para as mamas e rabo, eram as folgas para o pano não ajustar em parte alguma e disfarçar. Disfarçar aqui, disfarçar ali era o mote condutor das provas, para além do rol de impeditivos relacionados com a decência: o tamanho dos decotes, a altura das saias. Entre o meu projeto de peça e o que me vinha parar às mãos ia a distância do irreconhecimento.
Não tenho saudades das costureiras.
Agora têm um ar mais moderno e trabalham em lojas com porta para a rua e em centros comerciais, pelo que me pus à procura de orçamentos, armada com o casaco no braço. Pedi três, aceitei o segundo, e pretendo contar parte da história que envolve o primeiro.
Entrei na loja, a costureira parou a conversa de entretém que mantinha com outra, e expliquei ao que ia. Pretendia um orçamento para aquele casaco que me tinha deixado de servir desde que… e fiz uma pausa de dois segundos, enquanto algo ocupou a minha atenção. Foi o tempo suficiente para que terminasse a minha frase:
- … engordou.
Olhei para ela, sorri, percebi, e corrigi:
- … emagreci.
A senhora calou-se e disse-me:
- Vamos ver. Vista lá então o casaco.
Vesti, sempre sorrindo. O casaco estava larguíssimo. Era preciso mexer na cintura, nos ombros, nas mangas, desmontá-lo todo. Ela a dizer-me o que eu já sabia,  sem perceber de costura.
Acabou por não ser o orçamento eleito, não pela gaffe cometida, mas porque a achei reticente relativamente à envergadura do trabalho a realizar.
Mas o que compreendi eu com este útil episódio?! A forma como os outros me veem.
Eu sempre me achei gorda, e era, até há 4 anos atrás, altura em que mandei amputarem-me a maior parte do estômago para me impedir de comer. Foi uma cirurgia violenta, radical e com grande sucesso. Parei de comer inapelavelmente, e o que restou do meu estômago ganhou poder sobre a minha vontade. Não só passei a comer muito pouco e amiudadas vezes, como a textura e densidade do que consigo comer se alterou.  Ao meu estômago, que manda totalmente na minha atual alimentação, não interessa aquilo de que gosto, mas apenas o que aceita. Por exemplo, eu gosto de bananas, arroz e massa, e pretendia ingerir estes alimentos, mas o meu estômago deixou de os aceitar. Quando não aceita, trata-me muito mal e obriga-me a esvaziá-lo. Vou ficando progressivamente indisposta, até ao ponto em que me vejo compelida a correr para um lugar apropriado à regurgitação. Portanto, quem me conhece, poderá testemunhar que como agora exiguamente, e mais para alimentar o corpo do que para satisfazer a gula. A gula ficou em tempos idos. Não lamento, não voltaria atrás.
O meu corpo estabilizou nos setenta e poucos quilos, não mais de 75. Devo esclarecer que não me lembro de pesar menos, em adulta, mesmo durante as drásticas dietas de cenoura, peixe cozido e lágrimas convulsivas, nos anos 80. Concluo que este é o peso e a forma do meu corpo, segundo a genética que herdei. Não me parece que seja possível baixá-lo, a menos que faça exercício diário com o objetivo de queimar calorias, do que não estou interessada. Até posso fazer exercício com qualquer outro objetivo, mas queimar calorias sempre me aborreceu de morte.
Acho que estou muito bem assim, não me vejo nada gorda, mas absolutamente normal.  Este é o meu corpo. Se as costureiras e o resto das pessoas me veem gorda, é um fantasma estético com o qual terão de lutar e ao qual sou totalmente alheia. Estou livre disso e, tanto quanto posso observar ao espelho, sou linda. 

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