Não hei-de morrer como tu
Antes de morrer o meu pai
olhou-me com amor e doçura e disse “vai ser feliz”.
No dia em que o meu pai
morreu, eu estava a noventa quilómetros. Telefonaram-me. “O seu pai morreu”.
Não me disseram “o seu pai morreu solitário como um animal”. Apenas, “morreu”.
Pensei “não é verdade”, sabia que era, e meti-me no carro. Fiz o caminho
escutando rádio. Cheguei ao seu leito de morte, afastei do corpo
amado a mortalha que o cobria e constatei, “estás morto. Morreste mesmo”. Havia
pouca luz no quarto. Não chorei. Tapei-lhe de novo o rosto e saí.
Antes de morrer o meu pai
terá dito, “isto está mau”. Sentiu-a vir, ou não o teria dito. “Isto está mau.
Ela vem aí.” Não estive ao seu lado, e
morreu só, como um animal desamado.
Antes de morrer, o meu pai
disse-me “amo-te, amo-te, amo-te”; ouço estas palavras através dos anos; “amo-te,
amo-te, minha parte de mim, meu um, meu todo”, e quando durmo realizamos longos
passeios. Estamos sempre juntos, com a minha mãe, e outras vezes sem ela, com
as nossas piadas, a nossa fala.
Antes de morrer, a vida
inteira, o pai atirou-me para a vida sabendo que eu era a sua missão,
condenação e salvação. E eu estou aqui.
O meu pai não tinha os dedos
médio, anelar e mínimo da mão esquerda. Foram decepados por acidente, numa
tipografia das Caldas, onde trabalhou em adolescente, para levar comida para a
mãe e a avó, que faziam a sua parte na resistência à fome da casa. Criavam, com desvelo, pombos, galinhas e coelhos, aos quais davam nomes ternos, e meses mais tarde matavam para vender.
O meu pai deixava-me mexer-lhe nos
cotos, não lhe fazia impressão que sondasse e mexesse com os meus dedos
inteiros os seus perdidos. “Dói-te?” Não doía. “Doeu-te?” Não, nem dera por
nada quando aconteceu. Tinha sido de repente. Quando deu pelo sangue que pingava
no trabalho realizado, falava distraído com os colegas, e já não tinha dedos,
percebeu de relance. “E os dedos cortados?” Não sabia. Não se lembrava.
Lembro-me de reconstruir o
episódio dos dedos cortados, na minha imaginação, e de o ver saindo a correr da
tipografia, com a mão embrulhada em trapos sujos, a caminho do hospital.
Lembro-me da tipografia escura por dentro, repleta de máquinas oleosas e
oleadas, pretas. Da aflição dos colegas, mais do que da sua. Imaginei a oficina
na rua paralela à estação dos comboios, com porta para a rua. Imaginei tudo, a
vida inteira, dentro da minha cabeça, como quando leio um livro.
O passado do meu pai é um
livro muito fechado.
O meu pai descalço sobre as
ruas geladas. Foi a minha imaginação ou alusão da minha mãe?
O meu pai a fugir à escola e
ao professor mau.
O meu pai a roubar fruta do
outro lado da linha dos comboios.
O meu pai a mentir à minha
avó.
O meu pai a foder mulheres
casadas pelos esconsos da noite das Caldas. Inúmeras histórias
clandestinas, alimentandas pela minha imaginação sobre os ninhos que aqueceu e
abandonou sem explicação nem dó.
O meu pai a prometer à minha
mãe, “menina, ainda havemos de casar e eu compro-lhe uma mobília de caixotes”. E
a minha mãe a virar-lhe a cara, desprezando-o, “o casadão, o pobretanas - ó,
Maria Amélia, quem é o atrevido?”
Todos estes lugares que
nunca vi, existem na minha mente com cenários compostos, luzes, som, ação, e o
rosto moreno bronzeado do homem que amei acima de todos os outros, gozando a vida de sorriso aberto, sem um tostão no bolso.
O amor é o primeiro dos
mistérios. E o último. Ter sido desejada sem consciência e amada sem condições pelo
homem que me atirou para este dia, e me disse, já morto, “vai ser feliz”,
concilia-me com a solidão na qual me hei-de encontrar luminosa, inteira.
Cada mulher segue as suas
obsessões.
No dia em que ele morreu, prometi-lhe, "não hei-de morrer como tu." Começou aí.