Os prazeres dos sentidos
As mulheres grávidas estão em extinção, portanto quando entrou
uma no café, fixei nela a minha atenção e curiosidade e pensei para mim, “lá
vem mais um, coitado”, e a minha mente seguiu, especulando sobre o nascimento e
a morte.
Nós não morremos: nascemos para dentro. Tenho pensado muito
sobre o assunto, e quero convencer-me de que vamos de novo para a barriga da
mãe, de onde fomos projetados e arrancados, estrebuchando. Lavoisier tinha de
saber o que dizia, e todos os dias me agarro a ele para suportar as mortes dos
que amei.
Morrer talvez não seja muito difícil, se não tivermos pena
do que deixamos. Difícil é ir vendo morrer aqueles com quem temos pertença,
impotentes para lhes valer, conscientes da espada que, presa por um fio, espera
para cair a qualquer momento, não sabemos quando.
As últimas caricias que ofereci ao meu pai, a última
conversa que mantive com a minha mãe queimam-me, mas tenho de viver sem os seus
corpos, vozes, olhares, palavras, vontades, ordem de todas as coisas. Meu castelo,
meu mundo. Nascer, viver, morrer, nada a fazer quanto a esta trilogia. Resta aceitar
o que foi feito e transformar o fardo em pura leveza, através do golpe de
mágica dos dias que se vão sucedendo com desgosto e alegria, chávenas de chá, frio,
torradas com manteiga, as vacinas da cadela, chuva, sol, gente inesperada ou
costumeira.
Para mim tudo começou com o meu pai, que não era o mais
forte nem poderoso de nós os três. Não tenho uma explicação para a breve e
apaixonada ligação que tivemos, a não ser que sempre nos senti iguais no fogo
essencial que acende o interior dos nossos peitos.
O meu pai usufruiu a vida com um prazer que não voltei a
encontrar em ninguém. Para ele, todos os dias eram perfeitos, e se tinha
cometido alguma ação que contrariasse a sua consciência, recolhia-se, de rabinho
entre as pernas, aos conselhos sábios da minha mãe, fiel da sua balança.
O meu pai gostava do mundo, sem preferências: de mar, de
campo, de flores e deserto, de pessoas e bichos, de cinema e teatro, de livros
e música, de caminhar ou usar os transportes públicos. Gostava de falar com
toda a gente e toda a gente o conhecia. Tinha conversa. Sabia rir e sorrir. Era
um sedutor. As mulheres adoravam-no, portanto deduzo que os homens também. Defendia
apaixonadamente os seus pontos de vista, por vezes demasiado, e uma ou outra
vez envolveu-se em brigas que a minha mãe acabou por pacificar com paninhos.
Até ao momento em que ficou preso à cama, pela doença, tudo viveu, e bem, e
tirou partido. Lanço uma cintilante aurora boreal de fogo-de-artifício à variedade
e riqueza de vida que o meu pai teve a oportunidade de viver.
Foi também essa vida que o matou, porque cada gesto tem preço.
O meu pai estimava os prazeres dos sentidos, entre eles, o
do paladar, pelo que comia e bebia com um prazer visível, que alegrava as suas
testemunhas. Comer bem, beber bom! Se aproveitou?! Nem a rainha de Inglaterra
levará o estômago tão composto como o meu pai levou o seu!
Foi portanto com ele que aprendi a valorizar o prazer,
nomeadamente o paladar. Foi com ele que aprendi a comer e a beber,
experimentando o atordoamento satisfeito da saciedade. Com a minha mãe, que
devemos controlar os prazeres, de preferência evitando-os. Impossível não sorrir:
aqueles dois, que a vida juntou, foram os extremos opostos de uma pilha de alta
voltagem. Faz. Não faz. Come. Não come. Vai. Não vai. E como se entendiam bem!
Esse milagre nunca vivi.