Qualquer lugar na terra - fantasia de um conto de Natal português

A suburbana de meia idade não tinha brincado com irmãos nem com eles brigado.
Deus, tendo para ela guardado desígnios elevados, também não lhe concedera família romântica nem consequentes filhos, para melhor a habilitar a  olhar pela janela, sempre do lado de fora, questionando implacavelmente tudo o que para os outros seria a ordem natural e normal das tentações. A suburbana experimentara fintar o oráculo, e bem podia apresentar as provas, mas sem sucesso. Deus decidira. Estava decidido.
Com os anos aceitara, porque o tempo vai naturalmente polindo as pedras mais teimosas.
Conseguia sentir-se feliz com a menopausa no inverno, porque não dava pelos afrontamentos. Terem-lhe sobrado dois pacotes de pensos higiénicos do último avio no hipermercado tinha a vantagem de se poderem guardar para futuras perdas de urina que, mais dia, menos dia, apertariam. 
Mulher prática, educada segundo princípios de Economia Pura do Estado Novo, portanto, oriunda das melhores castas de poupança.
Colesterol controlado. Plaquetas, triglicéridos, tudo no sítio. 
O que lhe causava grande incómodo, anualmente, era suportar o Natal e o Ano Novo no mesmo espaço onde atravessava a rotina quotidiana. As iluminações de Natal, a árvore, os presentes, as canções, os votos habituais, vazios de intenção, o horror. A família, a família, a família, essa construção de união, desunião, guerras, equívocos, clichés, ordem, regra, salvação. Salvassem-na. Ou, melhor, salvasse-se.
Se não os podia vencer, podia ao menos fugir. 
Tendo os familiares mais próximos falecido, e não existindo a obrigação cultural de lhes fazer a tradicional companhia da época, pensou “ bazo a mil e sempre são oito dias de liberdade, vagueando por um lugar sem referências que assaltem a memória."
Fechada num quarto de hotel frente a uma tv, o que tivesse de ser. Tudo seria melhor do que passá-lo em casa. Tanto fazia. Amesterdão. Granada, Roma. Qualquer lugar na terra.
Visitou o site da Ryanair, o da Easyjet, a TAP low cost, o das reservas de hotel, de seguida saltou para o saldo bancário, fez as contas e decidiu cometer uma loucura:  esse ano passava o Natal no subúrbio e não se falava mais nisso.

Mensagens populares