A cadela loura e a cadela morena

Foto em http://jamesmoropets.com/about/

A cadela loura não gosta de cães. Gosta, mas tem medo. Gosta, mas não gosta, porque não sabe gostar, não aprendeu. Há pessoas assim. Eu talvez seja como a cadela loura.
É muito difícil gostar da cadela loura, mas eu amo-a profundamente, como às pessoas. Amo sem princípio nem fim. Quando começo a gostar, já gostava. Amo pessoas que me odeiam, porque sou incoerente e errática ou porque têm medo da minha crónica falta dele. Não compreendo o amor. Parece-me os pombos da minha rua. Estão por ali, materiais, reais, e a nossa vontade não conta. Os meus vizinhos enxotam-nos com os pés. Voam três metros, pousam adiante. Atiro-lhes migalhas, estimo-os.
Não compreendo o amor, mas sinto-o e alimento-me desse pãozinho que aproveito duro, esfarelado, em sacos pendurados atrás das portas.
A minha cadela Morena gostava de todos os cães, ao contrário da cadela loura. A Morena foi criada com muita liberdade e amor, como eu teria criado um filho humano. Comia-a de beijos. Tanto que me fugia para detrás do sofá. Comi-a de beijos a sua vida inteira, sempre que podia, como se o seu corpinho fosse o torrão do amor. E era. Gosto de beijos e se calhar sou chata com eles.
A Morena gostava de cães grandes e pretos. Quando os encontrava na rua tínhamos de parar para uma festa. A sua cauda rodava como os ponteiros de um relógio louco. Quando era pequena, em Alcácer, a Morena conheceu um doberman preto que morava na calçada alcunhada pelos locais como Chupale a Pele. Morávamos perto. Abria-lhe o portão e ela corria à procura do doberman, muito grande, ela muito pequena. Brincavam à desgarrada. Era um farrapinho de cadela. Os vizinhos vinham avisar-me, “olhe que a cadelinha anda ali na calçada e pode ser atropelada”, e eu lá ia, muito preocupada.

Choro muito a Morena. Nenhum cão compensa outro cão e o amor nunca morre. É tudo o que sei. 


Mensagens populares