A cadela loura e a cadela morena
A cadela loura não gosta de cães. Gosta, mas tem medo. Gosta,
mas não gosta, porque não sabe gostar, não aprendeu. Há pessoas assim. Eu
talvez seja como a cadela loura.
É muito difícil gostar da cadela loura, mas eu amo-a profundamente,
como às pessoas. Amo sem princípio nem fim. Quando começo a gostar, já gostava.
Amo pessoas que me odeiam, porque sou incoerente e errática ou porque têm medo da
minha crónica falta dele. Não compreendo o amor. Parece-me os pombos da minha
rua. Estão por ali, materiais, reais, e a nossa vontade não conta. Os meus
vizinhos enxotam-nos com os pés. Voam três metros, pousam adiante. Atiro-lhes
migalhas, estimo-os.
Não compreendo o amor, mas sinto-o e alimento-me desse
pãozinho que aproveito duro, esfarelado, em sacos pendurados atrás das portas.
A minha cadela Morena gostava de todos os cães, ao contrário
da cadela loura. A Morena foi criada com muita liberdade e amor, como eu teria
criado um filho humano. Comia-a de beijos. Tanto que me fugia para detrás do
sofá. Comi-a de beijos a sua vida inteira, sempre que podia, como se o seu
corpinho fosse o torrão do amor. E era. Gosto de beijos e se calhar sou chata
com eles.
A Morena gostava de cães grandes e pretos. Quando os
encontrava na rua tínhamos de parar para uma festa. A sua cauda rodava como os
ponteiros de um relógio louco. Quando era pequena, em Alcácer, a Morena
conheceu um doberman preto que morava na calçada alcunhada pelos locais como Chupale
a Pele. Morávamos perto. Abria-lhe o portão e ela corria à procura do doberman,
muito grande, ela muito pequena. Brincavam à desgarrada. Era um farrapinho de
cadela. Os vizinhos vinham avisar-me, “olhe que a cadelinha anda ali na calçada
e pode ser atropelada”, e eu lá ia, muito preocupada.
Choro muito a Morena. Nenhum cão compensa outro cão e o amor
nunca morre. É tudo o que sei.