Há um cão que te abraça através da poeira

Andrew Wyeth

Manuel António Pina, escrevo-te sentada junto ao portão de embarque, no aeroporto, com um dos teus livros no colo, sob este caderno. Requisitei-o na biblioteca pública. Não tenho dinheiro para comprar livros. Marco a lápis as páginas onde quero voltar para copiar versos. Os livros da biblioteca pública não são meus, mas se não são meus, são de quem? Imagino-me a próxima leitora do teu livro, interrogando-me sobre as motivações de cada traço da anterior leitura anónima. A partilha dos livros da biblioteca pública une-nos uns aos outros neste reconhecimento de coisas indizíveis que não nos conformamos em calar.
Escrevi-te um email há uns 4 ou 5 anos, ainda tu por cá andavas. Falava-te sobre os meus cães e a bicharada em geral. Não me respondeste. Talvez fosse uma carta pomposa demais. Talvez tu estivesses doente. Talvez tenha ido parar ao spam. Não pensei muito sobre o caso, porque quase nunca espero respostas. Estou aqui tão só comigo, que o que vier é uma oferta, e o que não vier, nunca existiu.
Lembro-te, hoje, dessa carta, porque agora já cá não estás, portanto acabou-se-te a doença, e não corres o risco do spam. É provável que tenhas mais tempo e disposição para me ler e eu estou a esforçar-me tanto por não ser pomposa que quase ia começando esta mensagem por "meu bom irmão".
Se puderes responder-me agora, se quiseres, se te parecer que valho a pena... queria dizer-te que sou estou mais pequena, mais nada, mais cão, cada vez mais cão que já não conhece a mãe nem o dono nem a casa. Só cão. E que estou a ler-te enquanto espero um avião. E que queiras ou não, o cão abraça-te através da poeira.

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