O cão feio

Ilustração: Pisanello

Na minha rua mora uma senhora muito desengonçada com um cão muito feio. Eu gosto dos cães todos, por isso cumprimento a mulher. Os donos de cães, regra geral, cumprimentam-se, portanto, embora nunca deixe ninguém chegar-se-me muito, sou relativamente tolerante a outros donos. 
O cão feio é de uma espécie oriental, de um acinzentado ruço, o focinho esmurrado, os olhos demasiado grandes para o tamanho do crânio, e um enorme tumor benigno caindo de uma das pernas como um testículo negro, disforme, granuloso, balouçando enquanto caminha e corre. Aquele tomate maduro deve pesar-lhe.
Há uns dias, estava a dar os bons dias à senhora desengonçada, e eis que ela, paralisada, com os olhos esbugalhados, exclama, "está a mijar-lhe na perna!". Olhei para baixo com vagares e apanhei o estafermo de perna alçada, assentando-me a mija da ordem numa ponta das calças. Não recuei nem avancei; não o enxotei, em suma, porque terminou mal olhei. A dona paralisada em desculpas. Não lhe disse nada. Apenas sorri. Quero lá saber se o feio do cão me mija nas calças! A senhora começava a aliviar o que julgava ser sua culpa, acrescentando à minha: que devia ser porque eu cheirava à cadela. Respondi logo que sim, que de certeza. E fui andando e sorrindo, convencida de que a senhora desengonçada ficou embaraçada por mim, ao ver-me enrolar os pés no seu tapete das etiquetas. É a sua ordem do mundo, distinta da minha e da do cão feio, que, justamente,
me marcou seu território.

Mensagens populares