Alguém tinha de me comprar I


Este  conto tem vindo a ser publicado no Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa de agosto, setembro e outubro (por sair).

“Eu tinha medo do branco. A pele encarnada escura do branco fazia impressão. Suja de terra. Mordida de mosquito. Cortada do trabalho. Cheirava a branco. Fruta estragada.”
Florência sacode a cabeça, acompanha a confissão com uma carantonha e um gesto de encolhimento no corpo grande, enrolado na capulana puída de 30 anos.
“O branco era velho. Conhecia mal. Agarrou o meu braço, assim, puxou para dentro da carrinha e levou. Era noite. Tinha festa do casamento na aldeia. Eles beberam todos. Família. Vizinhos. O branco. Comeram a comida que o branco ofereceu, levou. Tocaram batuque. Fiquei sentada volta da fogueira. Tinha de esperar. Sabia ia acontecer. Podia fazer nada. Depois eu fui.”

Florência fala olhando para baixo, sorrindo envergonhada. Temos a mesma idade. Cinquenta e dois. É uma mulher alta, gorda, pele muito negra, brilhante, lisa.


“Chorei. Sim, chorei. Fazia lamento pelo caminho, na minha língua. Português, sabia pouco, só palavras de comprar comida na cantina, os números, só isso.
Na carrinha, o branco disse, não chora, agora és minha mulher. Vais fazer tudo de uma mulher. Vou dar tudo de uma mulher. Não chora mais. Segurou meu queixo com a mão e beijou na minha boca. Fechei com força. Continuou conduzir."


(continua)

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