A noite

Há sempre alguma coisa para se fazer no desconforto de uma viagem pela noite. Olho para fora da carruagem, observando a noite, a luz protectora da lua, os espectros das árvores onde pousam os espíritos, as casas de luzes apagadas; depois, a claridade da madrugada, e nas casas acendendo-se pequenas luzes de gente que acorda cansada para um novo dia de escravidão; no passo seguinte, a luz crua, depressiva, estupidamente laranja do amanhecer. Como se não estivéssemos todos tão bem na noite a escrever frases nos cadernos de viagem, conjecturando o futuro próximo e praguejando contra os amores passados, sem interrupções.
Há sempre a manhã no final da noite. A luz que acorda tudo e todos, que ilumina o que vale a pena e o que não vale, e que por piedade devia deixar-nos repousar lentamente na sua ausência mais algumas horas. Adiar-se para o dia seguinte, ou para o outro, talvez.

E chegamos a Hendaie com o primeiro raio de sol que não houve. Uma manhã cinzenta. Um formigueiro de gente remexe bagagem. Há nervos. Pressa. Na transição para o lado francês, feita a pé, a polícia alfandegária escolhe passageiros para mostrar documentos. Escolhe os negros, os mulatos, os assim-assim. Eu sou branca, loura, nunca me escolhem, nunca olham para mim. Eu, cuja carne é tão desterrada, tão apátrida, tão só e desesperada como a daqueles homens e mulheres, não logro chamar a atenção de uma alma inquisitiva que olhe para mim e me descubra, escolhendo-me para mostrar o passaporte, ser interrogada, dizerem-me, je vous ai choisi, car, vous savez, je vous ai vu par dedans et vous avez l’air coupable. Não. Ninguém. Em frente como se não levasse as veias cheias de um contrabando intemporal.

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