Abraça-me e beija-me

Não me lembro de grandes traços particulares. Dez, onze anos com o nariz muito ranhoso e um rabo-de-cavalo despenteado; os olhos semicerrados, quando sorri; castanhos, pequeninos, cheios de vida e medo, desculpa e atrevimento. Faltam-lhe dentes. Não tenho a certeza. Não consigo fixar bem o seu rosto. Custa-me. Tenho vergonha. Faltam-lhe ou talvez estejam tortos ou riscados. Pormenores, não sei.

Hoje trazia umas calças vermelhas e uma t-shirt às riscas. Tenho essa ideia vaga. As unhas andam sempre negras, isso vejo bem, porque ela toca-me, abraça-me, beija-me. Ela agarra-me, e eu deixo, porque nesses momentos sou feliz. As pessoas reparam, mas eu quero que ela me agarre, que perceba que sou sólida, real; que existo para ela. Quero que me toque e beije e abrace, porque não sei quantas oportunidades terá, no futuro, de tocar, abraçar e beijar alguém. E abraçar, e ser beijada. Por isso, abraço-a e beijo-a, sabendo que o meu poder insignificante pode ainda protegê-la, e a mim, dos que reparam.
Quero habituá-la mal. Quero que sinta, depois, a falta inevitável de mim, para que procure noutros, nos que hão-de vir, o que teve comigo; quero que os mace, se forem de ficar maçados, mas que não se resigne a perder-me, estando esta perda datada.

Ela quase não existe. A Catarina. Não fomos apresentadas. Veio ter comigo. Olhou-me  e sorriu. É uma menina tão doce! Sinto-me uma menina grande, e ela é uma mulher pequenina. Creio que não sabe como me chamo. Nomeia-me pela incumbência que julga pertencer-me, como “senhor motorista”, “senhor enfermeiro", mas não tive tempo para reparar.

A mãe da Catarina trabalha na noite. O pai bebe. Tem mais 2 irmãos, com seis e dois anos. Os pais estão a divorciar-se, vivendo ainda na mesma casa. O pai, quando chega, bate na mãe e nos irmãos, enquanto ela se esconde. Conta-me.
Vem ter comigo aos gabinetes onde me encontro, espera-me pelo caminho, e conta-me tudo, enquanto me abraça, e fica encostadinha a mim sem dizer nada, e eu deixo-a sentir o meu calor. Conta-me:
- Eu era pequena, tinha dois ou três anos. Comi mal, depois era de noite e os meus pais foram trabalhar. Então, acordei de madrugada, com fome; como estava sozinha e vi no chão um biscoito de chocolate duro, pensei que podia comê-lo. Meti-o na boca e comecei a trincar, mas era duro e sabia mal. Depois, os meus pais chegaram, e ficaram aflitos, porque era uma tartaruga pequenininha. Tiraram-ma da boca já toda esquisita, blargh, mas não morri. Depois, a minha mãe, aflita, disse que nunca mais ia comprar tartarugas, para não acontecer outra vez.
Riu-se muito quando acabou. Perguntou-me se não tinha gostado. Respondi que era engraçada, mas, coitada da tartaruga!, e perguntei:
- Catarina, depois, a partir daí, nunca mais tiveste fome à noite, por comer mal?
Não se lembra. Olha para mim séria. Não percebe.
Mas eu sei, pela forma como me procura, me abraça, me beija, que sentiu sempre, sente agora, uma fome devoradora de tudo, a qualquer hora. Uma fome de mim, que tenho nada. Reconheço-a. E quando estamos abraçadas, ela mata a sua fome inicial, e eu, a minha, crónica. Resta-me acreditar que o calor dos meus braços aqueça os seus neste instante, só por agora, esperando que a distância e o tempo não permitam, nunca, encontrá-la vendendo os seus abraços e beijos tão cheios de luz e sombra.
Aperto-lhe a mãozinha. Aperto-lhe muito a mãos e os pulsos, e quero dizer-lhe aquilo que dizemos quando apertamos com força as mãos e os pulsos de alguém.

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