Alguém tinha de me comprar II

Foto: Jessica Dimmock

Este  conto tem vindo a ser publicado no Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa de agosto, setembro e outubro.

Não queria o branco. Não queria casar. Tinha minha mãe mandar carregar latas de água para casa todos dias, apanhar ramos de micaia seca, atear fogueira no jantar, limpar chão com vassoura, levar cabritos na erva, tomar banho no Zambeze com outros da minha idade. Chapinhar, mergulhar longe de jacarés. Isso queria. Casar não.”
Levanta a cabeça. Confirma, “casar foi combinação do branco com minha família. Não fui perguntada”.
Florência continua.
“Em Tete faz 40 graus para cima. Não tem vento. Não consegues respirar. Dia inteiro debaixo do sol. O embondeiro por cima das palhotas não tem sombra para aliviar calor. Corpo incha. Precisa aguentar, aguentar. Esperar chuva. Quando chove, muito forte, pregos de água, hi!, pouco tempo, a terra solta fumo, como atiras água nas brasas, sabes?! Depois, chuva para, de repente, formigas com asas vêm dos buracos no chão, e voam, voam, malucas, perdidas, malucas mesmo, sem casa, até cair, e nós rimos, e saímos para apanhar, meter nos panos, e assar para jantar.”

Agora ri. Não pergunto nada. Deixo-a com o seu pensamento. Está na savana apanhando formigas com asas, os braços estendidos. Rodopia no baile com as formigas agonizantes. Ri. Mal se vê o seu corpinho de braços abertos. Asas brancas. Um zumbido forte de milhares de insetos sem rumo, debatendo-se nos seus últimos momentos.
O riso apazigua-se. Volta devagar ao presente, e olha-me, sorrindo com uma paz que não conheço.
“Na casa do branco havia sombra. Na casa do branco não comia formigas. Só carne, arroz, batata, feijão. Comer muito sabia bem. A seguir veio tempo dos brancos ir embora, da guerra Renamo e Frelimo. Comida era complicado. Mas casa do branco tinha sempre comida. Não fazia fogueira. Tinha fogão. Tudo fácil. De branco, mesmo.
Não gostei do branco durante muito tempo, só da carne, mas o meu coração continuou a viver sozinho, sem irmãos, amigos, só o branco que saía manhã cedo, voltava no almoço e noite.
Não chorava mais. Comecei de engordar, ficar grande. Pele bonita. Depois, muito tempo, não sei quando, devagarinho, já gostava um bocado, mas não sei, não fiz nada. Não percebia. O branco cheirava menos fruta estragada. Habituei ao branco.”
“Tínhamos a mesma rigorosa idade”, digo-lhe.
“Era”, responde.
Florência olha-me. Faço perguntas difíceis. Não pensou. Quero ver e entender aquilo em que não pensou.
Cala-se por um bocado. Depois fala.
“Tu és diferente. Foste na escola. Sabes ler, escrever. Eu estou fechada dentro de ser mulher. Aprendi a tua língua com o branco. Ele é meu homem. Dono. Patrão. Comprou. O tempo não muda. Podia ser outra maneira. Ficava na palhota e havia de vir preto da aldeia perto. Mas o branco quis. Foi lotaria.
Os dias fizeram caminho. Vem luz, depois vem noite. Barriga cresceu. Tive quatro filhos do branco. Uma menina. Três meninos. Não sei como é outra maneira. Só assim. Não tive outro. Ficas presa com a corrente da vida. Toda amarrada sem corda. Tu vais e é assim. Mesmo coração a doer, tu obedeces, aguentas. Vais. Vais. Continuas.”
As mulheres dos brancos vinham, davam roupas para as crianças, diziam, Florência, o teu marido tem mulher, filhos grandes, maiores que tu, lá na Covilhã. Eu ouvia. Nunca fui nessa Covilhã. Fiquei só saber que tinha vida lá. Mulher mais velha. Fazer nada. Falavam com Sarmento. Havia problema. Para mim não era problema.
Sarmento tinha essa mulher e filhos quando comprou-me por 12 sacas de farinha, dez cabritos, galinhas, caixas de cerveja, garrafões de vinho e óleo não lembro, muitos. Tinha 11 anos. Ser branco custou-lhe muito mais caro. Bem feito!

Florência ri de novo. Ri muito. O peito grande abana. “Bem feito! Castigo!”

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