Alguém tinha de me comprar III

Foto: Paul Strand

Este  conto tem vindo a ser publicado no Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa de agosto, setembro e outubro.

“Como é que ele te descobriu, Florência?”
“O branco era patrão do meu pai na machamba, lá em Tete. O meu pai cavava, regava com água do poço, cortava cana, banana, apanhava maçaroca, amendoim, mandioca, e comida de branco. Todos os dias ia lá.
A machamba do branco tinha poço fundo. Ele deixava os pretos entrar, tirar água, levar. Não tinha problema. Eu ia lá. Água muito limpa. Fria mesmo. Não precisava ir no rio, mais longe, no calor, carregar latas, quilómetros debaixo do sol. Na machamba, o branco tinha muita comida, cama, limpeza, criados. Eu ficava sentada nas latas, olhar, debaixo do cajueiro. Ele viu no poço com outras raparigas. Rimos. Agradecemos na nossa língua. Respondeu. Sabia falar um bocado mal, maneira de branco, mas falava. Olhou para mim com os olhos parados, como o leopardo. Depois passou tempo, tempo e ele foi lá comprar.
Quando fiz onze anos o meu pai disse minha mãe, “Sarmento viu Florência no poço. Quer comprar.” Falaram. Chamaram família mais velha. Combinaram preço. Cabritos, sacas grandes de farinha, comida, bebida. Combinaram dia do casamento. Já contei.”

Estamos sentadas em bancos de madeira branca lascada sob uma laranjeira, no quintal da casa de Florência, na Malveira. É um Verão quase tão quente como os de Tete, que me relata. 
Sorri. Sorri sempre como se tudo fosse aceitável, como se o mundo fosse para receber tal como vem.
“Foi como Deus escolheu. Havia de chegar tempo em que alguém vinha e levava... eu sabia”, responde em voz baixa.

Encaro-a por momentos. Como Deus escolheu, disse ela! Deus! Penso. Acordar uns dias a seguir aos outros, sábado, domingo, segunda, terça, trabalho, folga, trabalho, Verão, Inverno; atravessar décadas, empurrando risos e lágrimas tal como se aceita uma missão do outro lado do mundo; resistir a uma viagem longa, mas curta demais para a paz, retalhada de planos desfeitos e refeitos. Morrer em vida. Renascer do pó das derrotas e continuar, como se a alquimia do esquecimento fosse possível. E prosseguir. Como se fosse possível… 

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