Alguém tinha de me comprar IV

Foto: Paul Strand
Este conto tem vindo a ser publicado no Le Monde Diplomatique. A última parte pode ser lida na edição de outubro.

No início da vida do corpo ainda não sabemos como pretendemos rodar a roda dos dias. Não vemos a roda nem os dias, que se sucedem sem pensamento. Somos animais. 
Um dia chegam-nos planos à cabeça. Pretendemos ser uma coisa, sonhamo-la, fazemos diligências para a realizar. Mas roda dos dias circula sobre nós, de metal, pura e fria, e num momento, que chegará, cai-nos nas mãos o próprio corpo esfacelado. O que fazemos com ele?
Suspiro. Respondo.
“Não, não consigo conceber a vida se tivesse estado no teu lugar, Florência. Não é normal. Tu eras uma criança. Vejo rapto...”
Florência dá uma risada breve, e nela vejo uma catadupa de imagens, memórias, anos. Consigo perceber isso. Não, eu não posso compreender, concorda.
“Passou. Faz muitos anos”, justifica. “Sabes uma coisa não ter maneira de conserto e precisas viver na mesma? É isso! Um dia é igual outro dia, mas é diferente. Começas tudo de novo. Habituas. Trabalhas o dia inteiro. Não estás pensar. Depois dei filho nos 13 anos adiantados. Antes não. Nunca era capaz. Arlinda, primeiro. O branco servia de mim à noite, depois dormia. Eu dormia. Normal.
Comecei de fazer comida de preto, farinha com peixe, depois ele ensinou comida de branco. Eu lavava roupa, limpava casa, varria quintal, ficava vassoura na mão ver outros pretos da machamba, falava nas escondidas. Eles faziam cumprimento, diziam, tens tudo, agora és branca. Meu pai vinha cumprimentar como eu fosse branca...
Sarmento não falava muito. Só coisa de casa, comida, trabalho, filhos. Quatro mulatos grandes, bonitos, riam, corriam, trabalhavam duro na machamba, lado do pai; rapazes e Arlinda.
Foi só depois ela nascer, ouvi tal conversa de Sarmento com outros brancos. Mulher em Portugal. Filhos grandes. ”
Fita-me como se quisesse consolar-me, com os olhos vivos ligeiramente subidos nos cantos exteriores e muito sossegados. O rosto bonito, de bochechas lisas. O corpo vigoroso, muito desamarrotado, ainda.
“Digo o quê?! Nesse tempo não pensei mais nada. Não havia maneira. Era criança, não podia correr, fugir. Negócio estava feito. Tinha de habituar. Tens de entender. Era antigamente. Eu era preta. Sarmento era branco. Era negócio permitido, bom para minha família. Ele pagou caro. Pagou bem. Eu tinha braços e pernas grossos, força, dentes bonitos, olhos grandes. Negócio bom para minha família. Fazia o quê?”
E volta a recordar-me: “Sarmento carregou a carrinha dez vezes, entrou na picada e entregou pagamento no embondeiro, no lado das palhotas. Festa grande quando o sol começou de cair. Beberam toda noite. Dançaram. Tocaram. Chamaram feiticeiro. Os espíritos foram perguntados. Fizeram oferta de flor, vinho, comida. Responderam com permissão. Podia ser. Podia ir, não havia problema. Eles disseram “rio vai continuar correr muito tempo até chegar no mar e atravessar caminho, longe”. No final da noite, ouvia barulho de hienas, chitas, bichos bravos, bichos da noite à volta, mexer no mato, e branco levou para casa, puxou braço, arrastando. Sim, eu chorava, afundava pés fundo na areia para não ir. Era criança. Tinha de chorar.”
Lembra os faróis da carrinha cortando a noite na terra da picada e os insetos cortando os fachos de luz. Lembra o caminho muito longo. Muito mais longo do que quando o calcorreava com os seus pés. Lembra a chegada a casa do branco. O desligar do motor, dos faróis. A mão cerrada no seu braço como uma argola de ferro para a vida inteira. O ruído da porta de casa que se abria, primeiro a de rede mosquiteira, depois a de madeira que trancava. O chão de cimento da cozinha, onde se sentou, e ele disse, bebe, vais ficar melhor.
“E eu bebi. Pouco, pouco, parei chorar. Sentado na minha frente. Olhava. Eu, agarrada barriga. Ele disse chamava-se João. Primeiro só sabia Sarmento. Depois fiquei deitada cabeça em cima da mesa. Ele levou no quarto, deitou na cama. Dormi na cama do branco. Princípio agarrou. Mais nada.
“E os dia seguintes? Não fugiste porquê?”, pergunto. 

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