Alguém tinha de me comprar V


Este conto tem vindo a ser publicado no Le Monde Diplomatique. A última parte pode ser lida na edição de outubro.

Florência continua.
 “Sarmento tinha uma casa de cimento pintada de amarelo bonito, com mobília de tudo, e rede de mosquito nas portas, janelas. Tinha torneiras na casa, latrina, chuveiro. Eu estava curiosa. Já não ia carregar latas de água com os pés queimar na terra. Ia comer carne e arroz. Comida boa mesmo. Gostava. Sarmento era esperto. Levou na loja, comprou chinelo, comprou sapato, vestido encarnado, amarelo, verde, capulanas novas, lenços para cabeça, anel, pulseira, tudo de mulher. Gostei. Era prenda alegre.”
“Foi-te comprando…”, concluo.
“Ele já tinha-me comprado. Alguém tinha de comprar-me, é isso tu não entendes”, responde-me.
“Família ficou para trás. Mãe, pai só vi quando nasceu Arlinda. Sarmento foi mostrar filha. Minha mãe falava comigo como com mulher igual. Já não era minha mãe. Eu estava na vida de branco. Eles diziam. Depois guerra Frelimo-Renamo. Não havia comida na cantina, supermercado, tudo vazio, prateleiras só. Sarmento ia ajudar na aldeia. Carregava comida da machamba, ia na picada, sempre levava, com os mulatos dele. Ia mostrar. Eu ia frente na carrinha, sentada como branca. Toda gente ficava olhar, mas sabia era só mulher do branco, mulher de prazo, como falavam os brancos. Um preto para chegar perto de branco tem de ir na escola. Não fui. Nesse tempo, já estava mulher grande. Gostava da casa. Sarmento ao meu lado era homem pequeno. Mandava muito, mas branco pequeno, sempre andar, sempre mexer, magro de cão.
No tempo da guerra, Sarmento tinha brancos que davam ajuda; traziam leite em pó de candonga, traziam comida na lata, salsicha, sardinha, cerveja, vinho. Chegavam brancos do Songo. Barragem. Fazíamos troca. Levavam banana, papaia, manga, couve, alface, cenoura, tudo na machamba. Deixavam lata de feijão, saco de arroz, massa, café, bolacha.
Na guerra só havia carvão. Tudo carvão. Renamo queimava. Vinha Frelimo, queimava. Todos matavam. Comboio não carregava. Carro não passava. Povo todo fechado na terra. Sem coisa para comer. Só medo.” 

Mensagens populares