Da responsabilidade do autor

Joseph Beuys


Toda a existência, material ou imaterial, depende da percepção individual por parte de um sujeito.

Por exemplo, tenho um vestido verde que a minha prima afastada me garante ser azul.
Outro exemplo, o meu pai achava que eu cantava bem ópera, mas a minha prima paga para me calar, de todas as vezes que ensaio uma ária.

Lembro-me da minha visita à Darmstad Galerie para ver algumas obras maiores de Joseph Beuys, nomeadamente, as que se relacionam com o holocausto dos judeus na II Guerra Mundial. Numa sala inteiramente dedicada a Beuys, encontravam-se caixas de vidro, dentro das quais, usando objectos fora do contexto para que foram criados, o autor recriava ou aludia simbolicamente a situações da guerra. Por exemplo, um chouriço seco seria carne morta, para mim. Para outro, não sei. Um chouriço seco e cortado, pintado a tintura de iodo, seria o que quiséssemos que fosse.

Volto à primeira frase, tudo o que existe, material ou imaterial, possui duas naturezas: aquilo que é, e o que queremos que seja. Ambas valem por igual.
Há casos em que o sujeito não consegue ter consciência do enorme desfasamento existente entre o real, e o real tal como ele o concebe, e, nesse caso, a distorção pode tornar-se perigosa para si e para outros.

O que se faz com o que existe, um ferro de engomar, uma embalagem de massa cotovelinho, uma farpa de madeira, pode não ser exatamente aquilo para que o objecto foi criado. Posso usar o ferro para alisar os cabelos; posso colar as massas numa tela e fazer uma obra de arte; posso usar a farpa de madeira como arma.
Um criador não pode ser responsabilizado pelo uso que se deu ao objecto; a pessoa que concebeu o ferro para uma determinada função não tem culpa que o jovem roqueiro tenha queimado os cabelos finos, enquanto os alisava. Essa primeira natureza do que existe, ou seja, o que, à partida, ela é, defende o criador do sopro de vida com que animou a sua criação. Não é da sua responsabilidade o que outros fazem com o que criou, mesmo que se cometa vileza.
Joseph Beuys não pode ser responsabilizado por eu me ter sentido deprimida, após conhecer as suas composições sobre os campos de concentração. Se alguém usa o Lolita, de Nabokov, como manual de pedofilia, caso isso seja possível, isso escapa ao controlo do autor, encontra-se fora do seu poder.

Quem cria, desenvolve e reserva uma consciência pessoal e inviolável relativamente ao que cria. Esse consciência é o seu refúgio, a sua defesa, a sua obra; o resto, é de quem o apanhar. 

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