É fácil ser-se aventureiro sentado no sofá

Algures em Hendaye surge um TGV confortável, iluminado por luz branca, que nos desinfecta da noite anterior, mas que não é verdadeiramente um comboio, antes uma nave espacial - rasa o solo e desemboca na Gare du Nord, em Paris, donde saltamos para a de l´Est, onde apanharemos ligação para Munique, queira Deus, e depois para Viena. Em Viena, finalmente, estará o comboio para Bucareste, e a partir daí olhe por nós todo o panteão de santos.
Não visitámos Paris nem Munique nem Viena. Em Paris houve tempo para Su comprar rolos de fotografia, e alguma comida, enquanto eu guardava as mochilas na Gare de l’ Est. Seria impraticável movermo-nos pela cidade de Paris atracaçadas com bagagem. Não conhecia Paris, e permanecer horas sentada na estação guardando mochilas foi deveras frustante, mas tínhamos de ser práticas. Cada uma deveria dedicar-se ao que sabia fazer melhor, e naquele momento a minha especialidade era guardar mochilas. Tínhamo-las preparado judiciosamente para o que não sabíamos ir encontrar; kit de salvação para um mês em território agreste e desconhecido. Mochilas grandes nas costas, bem pesadas. Mais pequenas, mas não demasiado, encostadas ao peito, com os artigos mais importantes. Tudo o que pudesse fazer-nos muita falta, em caso de roubo, estaria na mochila que nos esmagava o peito. No caso de Su, documentos, dinheiro e máquinas fotográficas. No meu, óculos, lentes de contacto, líquidos das lentes de contacto, caderno e esferográfica, documentos e dinheiro.
Lembro-me do Sol em Munique. Lembro-me de me sentar na escadaria da estação, apanhando o ar da manhã e contemplando os homens a beber cerveja nos bares fronteiros. Alemães feios, falando alto. Mas era manhã e estava optimista. A seguir, Viena de Áustria, e Viena era uma evocação de valsas e música. Não saímos da estação.
O comboio para Bucareste saía de Viena ao final da tarde, via Budapeste e Praga, cheio de romenos e contrabando. Eu e Su, desconfiadas como cães de fila, e preparadas para uma viagem dura. Preparada, ela. Eu rapidamente descobri que não tinha preparação alguma para uma “viagem de investigação, miscigenação e descoberta”. É muito fácil ser-se aventureiro sentado no sofá da sala, lendo a National Geographic. Fazemos isto e o mundo. Claro que dormimos em qualquer lugar. Não teremos medo de nada. Chegados aos locais, alguém faça o favor de nos indicar hotéis limpos e seguros, e depressa.
Apanhamos o comboio para Bucareste com ele já em andamento. Corremos. Conseguimos, com os bofes à boca. Talvez nos tenhamos enganado na hora. Talvez fosse muito curto o tempo que mediava entre uma e outra ligação. Agora, já não interessa, porque agora conseguimos, e estamos já a procurar uma cabine relativamente vazia, uma que nos pareça segura, com mulheres, de preferência, ou turistas. O ideal seria mulheres turistas. Nada. Tudo cheio. Quase tudo. Há dois lugares numa cabine onde já se encontram seis romenos. E é nessa que vamos viajar até à Roménia.

Dizem que o esperanto se baseia essencialmente nas línguas românicas. O que falámos naquela cabine, pela noite fora, foi uma língua que se exprimia com o corpo e que se inventava à medida das necessidades. Ensaiámos com Pompiliu e amigos, nessa noite, e pela madrugada, um esperanto que era sede de saber e cansaço. Era uma língua que se ia tornando mais entaramelada e permissiva com o abatimento da viagem, das horas sem dormir, da mistura gasosa dos nossos suores agridoces pelo compartimento. Chapinhávamos, primeiro, em verbalidade românica imperfeita, mas comunicacional, justaposta, aglutinada, e avançávamos até momentos em que, sinceramente, já chafurdávamos num caldo de línguas que nunca seríamos capaz de reconstituir. Era um romance com traços germânicos e eslavos. Pronunciávamos combinações ultra-heterodoxas de radicais, prefixos e sufixos que julgávamos existirem na língua do outro ou numa língua que o outro conhecesse. Na prática, falávamos todas as línguas e nenhuma delas.
Nessa extraordinária língua nos descreveu Pompiliu, esgotado, esperançoso, agarrado ao contrabando que nunca vimos, o antes e o depois da loucura romena.

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