O dia de hoje

Foto: @Bruno Boudjelal
I

Na casa dos meus pais, depois da minha mãe, agora minha, precisei de alterar quase tudo para fugir à opressão da memória. O meu antigo quarto de solteira é agora quarto de hóspedes. Quando chegam visitas, sinto uma necessidade irracional de explicar, "é o meu antigo quarto de solteira". Digo-o, e fico a rir-me sozinha com os meus pensamentos, a minha consciência.
Gostava de mudar para uma casa na qual não estivesse tão duramente gravada a minha história.

II

Escuto o dia inteiro a minha vizinha a entreter o neto de dois anos. As paredes não são finas, eu é que tenho ouvido de tísica. Em Portugal, os avós são creches. Que paciência! Que disponibilidade! Afinal foi bem melhor não ter sido mãe. Deus escreve direito por linhas muito tortas.

III

Os velhotes da minha rua conversam sentados num banco. Veem-me aparecer e exclamam, "cá está esta jovem!". Sorrio. Cumprimento. Não contradigo. É tudo tão relativo. Há dias em que sou tão mais velha do que eles.

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