O esquecimento

Não me lembro de nada.
Não se lembra.
Por que que é entoou dessa forma?
Eu não entoei.
Não entoou?!
Não. A Isabela é me atribuiu o seu pensamento.
Pensei que estava a censurar-me por não me lembrar.
Não. A Isabela é que se censura por não se lembrar.
Silêncio.
Diz que não se lembra da Roménia.
Não é da Roménia. De Bucareste. Lembro-me da chegada; da partida, vagamente, e de pouco mais.
Há quanto tempo lá esteve?
Há 16 anos.
É muito tempo. Não é de estranhar que não se lembre.
Considerando que passei todo esse tempo a querer esquecer… foi uma experiência violenta. Não resolvi aquilo. Mas não é como Moçambique, se é isso que está a pensar…
Não estou a pensar em nada.
… eu nunca quis esquecer Moçambique.
Nunca quis esquecer...
Não, nunca. Queria muito lembrar-me de tudo. Contar.
Mas mudou aquilo que tinha para contar.
Bem, quando cheguei a estas sessões tinha construído uma memória mais aceitável. Considerava que tinha tido uma infância feliz, uma infância de ouro. Lembra-se de lhe dizer isto?
Lembro-me.
Sorrio um bom bocado, olhando para o tecto. Entretenho-me, nos silêncios, a analisar o padrão axadrezado do tecto falso, fazendo desenhos com os olhos, seguindo linhas, saltando de motivo em motivo.
A Isabela pensa que se constroem memórias.
Doutora, tenho a certeza que se constroem e se destroem. Ou melhor, destruímos e edificamos depois, por cima, aquilo que suportamos.
Não é o caso da Roménia.
Não é, porque quis apenas destruir.
Mas veio cá para relembrar.
Sim.
É importante para si.
Não suporto o fracasso… não atiro para trás das costas, como os outros.
É essa impressão que a Isabela tem dos outros?
Oh, sim, a leviandade das pessoas impressiona-me. Por isso é que elas aguentam três Roménias e dois Iraques, e chegam todas sorridentes dizendo que foi fixe! Não dão por nada… é como se estivessem de férias em Ibiza. As pessoas não vivem as situações, não as sentem.
Você sente.
Demais.
E Bucareste?
Fecho os olhos.
Bucareste... eu sei lá! Estava muito calor. Recordo bem aquela brasa. O sol forte, a luz muito clara, as sombras pintadas de um negrume... Uma rua transversal ligava duas artérias principais. Uma basílica ortodoxa de um dos lados, prédios do outro. Era um lugar acolhedor, mas apareceu alguém que pretendia roubar-nos. Um homem jovem ou rapazes. Houve confusão. Tenho esse slide na cabeça. Está a ver?! São apenas impressões! Tenho fotografias mentais de outros lugares desconexos. Uma rua que subimos e onde fomos comer uma iguaria romena. Uns pastéis salgados. Eu andava cheia de fome, mas nessa altura da minha vida ainda não admitia a fome. Comia bolachas às escondidas…
Agora já admite a fome.
Que remédio! Como é que posso esconder? Quando olha para mim não vê nitidamente o resultado da fome?!
Silêncio.
...é difícil descrever ruas com prédios. Ruas batidas por um sol cruel ou sombrias, fétidas. Prédios e portas degradados. Restos de um regime que se foi mas não pôde ainda remover-se das fachadas. A certa altura fomos visitar o palácio de Ceausescu, ainda por terminar à data do seu fuzilamento – um portento de betão. Gigantesco. Do tamanho da Baixa de Lisboa, com dezenas de andares. Altíssimo. Feiíssimo desde os alicerces. Um eloquente exemplo da arquitectura que agrada aos poderes que não se questionam. A grandeza medonha. Acredite que metia medo. Fiquei com a sensação que quem lá entrasse já não saía. Andámos à volta daquilo, apenas. Um descampado… tudo fechado. Mas era uma visita obrigatória. tinha que se fazer. Perto, uma zona residencial qualquer... casas de gente mais endinheirada… percebia-se. Árvores cuja sombra não refrescava. Comprámos uma garrafa de água numa loja muito ocidentalizada. Estava mortinha por sair dali.

Palácio do Povo, Bucareste

Queria sair dali.
Sim, logo no início. Aconteceu assim que cheguei. Senti-me mal. Longe de casa. Estrangeira. Estranha. Desprotegida.
Mas as pessoas ameaçavam-na?
Penso que sim. Não lhe sei dizer como. Éramos duas mulheres sozinhas num lugar onde ainda bastava ser mulher para se ganhar vulnerabilidade. Creio que tentavam apanhar-nos distraídas para nos roubarem. Havia gente mal encarada, e aquilo era triste, sujo, e pobre
Isabela, já a ouvi descrever assim um outro lugar...
Não havia muita diferença entre a pobreza e sujidade de Bucareste e a de Portugal, por todo o lado, quando cá cheguei. Bucareste até ficaria a ganhar. É uma cidade monumental. Impressiona mais. Tenho essa ideia de edifícios enormes, estatuária de uma solenidade impressionante… mas triste. Tudo triste.
Silêncio.
Somos parecidos no atraso, penso eu. Na ruralidade. Nos horizontes limitados. Na obediência à ordem e, por outro lado, na indisciplina.
Essa semelhança fê-la desgostar os Romenos?
Não desgostei. Depende dos Romenos. E eu também gosto dos Portugueses…
Mas não se sente Portuguesa?
Porquê?
Disse “eu também gosto dos Portugueses”…
Sinto! Mas sou uma Portuguesa que se questiona permanentemente sobre essa pertença, sobre a sua identidade. Sinto-me Portuguesa como penso que um filho adoptivo se sente filho, que deve ser algo do género, aquela é a minha mãe, mas toda a gente sabe, eu, ela, o mundo, que não sou seu filho.
Mas vai adoptar.
Vou, mas convém ser realista. À cautela. Deixe-me contar-lhe isto…
Conte.
Quando trouxe para casa a Lili, que hoje é a cadela da minha mãe, não sentia nada de especial por ela. Estava abandonada, e eu quis ajudá-la, protegê-la, amá-la. Mas no momento em que quis amá-la, ainda não nos amávamos. Tínhamos simpatizado uma com a outra e pareceu-nos que viríamos a amar-nos. Melhor, tivemos a certeza. Mas a Lili foi uma cadela difícil, vadia, cheia de vícios… Mas aceitei. Tinha de aceitar, de entender-me com ela. Lembro-me de nos primeiros tempos olhar para aquele doce de animal e pensar “ainda não te amo”. Ainda não a amava como à Micas. Mas depois, devagar, dia-a-dia… quando voltei a pensar no nosso amor já estávamos presas com mil laços.
É uma história bonita.
É.

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