O valor da dignidade

O tráfico de drogas, armas, influências, órgãos, pessoas constitui uma profissão? E o lenocínio? E a corrupção? Vamos imaginar a seguinte situação: precisamos de preencher um impresso escolar para fins estatísticos. Profissão da mãe? Traficante de crianças africanas para fins de escravidão ou extração de órgãos; profissão do pai? Pedófilo de média dimensão. Rimo-nos pela incredulidade, mas pessoas destas cruzam-se connosco na rua, moram ao nosso lado e vivem do lucro que fazem no exercício da atividade ilegal. Aquilo que torna a tarefa ilegítima aos nossos olhos não é a troca comercial de moeda ou serviços, mas o facto de ser indigna tanto para quem exerce como para quem se sujeita à prática ou a estimula; o consentimento ou dependência do corrompido não altera a natureza da indignidade. É indigno para os envolvidos, independentemente do papel que desempenham. É-o mesmo que não tenham consciência da injustiça. Uma coisa é a indignidade e a injustiça, outra a responsabilização e criminalização pelo acto cometido. Ou seja, o traficante, o corrupto e o pedófilo também praticaram injustiça e indignidade sobre si, o que não atenua a sua culpa.
Isto é tudo difícil de perceber, porque, como qualquer ciência, assenta sobre o pressuposto de conhecimentos adquiridos em fase primária, formal ou informalmente. O que é a dignidade?
Ser indigno não é um problema que atormente a maioria do seres humanos: não se conhece bem o sentido do termo, embora já se tenha ouvido a outros, sem perceber o contexto. Portanto, a indignidade não é obrigatoriamente intencional; também acontece ser-se digno: acerta-se aleatoriamente, como se fosse um cinco no totoloto.
Se formos para a rua perguntar às pessoas se se sentem indignas, é provável que metade delas nos diga que não, que nunca sofreram disso.

Somos aparentemente livres, relativamente prósperos, e sentimos que quase tudo nos é permitido. Insultar outro, agredi-lo, não é grande problema. Há quem defenda que a desigualdade e a injustiça, como não se podem solucionar sem perigo de irremediável desestruturação económica, devem ser socialmente aceites e tributadas.
A dignidade é um princípio moral, mas por esta via também me meto em trabalhos. O que é um princípio? E a moral? Para facilitar a comunicação, digamos que a dignidade implica que encaremos a nossa existência humana exactamente como se encara o símbolo do nosso clube de futebol. Orgulhamo-nos do que simboliza. Não queremos queremos vê-lo sujo nem rasgado. Não queremos que o usem para fins inapropriados, que o desrespeitem. O nosso clube de futebol não é o melhor na medida em que ganha os jogos todos. Não; mesmo que perca é bom, está é em baixo de forma. O nosso clube de futebol é um valor indiscutível. Como um diamante. O valor de um diamante não depende da sua utilidade. Pode nunca sair de um saco de veludo e mantém o valor. É riqueza. A dignidade é mais ou menos isso. Como se fôssemos um clube de futebol cuja claque somos nós. Como se fôssemos, para nós, a garantia de um diamante dentro de um saco de veludo, dentro de uma gaveta.

Há realmente práticas indignas universal e intemporalmente. Não creio que alguém se sinta orgulhoso por ter um filho corrupto. Que espalhe a notícia. “Ah, o meu filho está muito bem, entrou para a corrupção, e a minha nora ajuda na contabilidade.”
Isto é lógico, para mim, mas não tenho a presunção que o seja para todos. Há tantos advogados da indignidade como do diabo; é possível vesti-la bem, dar-lhe bom ar e inocentá-la. Há quem pretenda dar-lhe nome de firma. Pessoalmente, mesmo contemplando heróis e heroínas românticos não creio que a dignidade seja relativa. Um pícaro pode ser superlativamente inteligente, atraente e divertido na sua indignidade, mas não digno. Ou pode ser digno e indigno, conforme o destinatário ou o contexto. Ou pode aparentar ou construir uma aparência de indignidade e nunca ter corrompido o coração. A dignidade não é extrínseca nem visível a olho nu.  É tudo o  que sei.

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