Um braço a menos

Não sei por que se viaja. Não estamos tão sossegadinhos nos nossos respectivos lugares macios, esperáveis?! Para quê darmo-nos ao incómodo do cansaço, de afogueados exercícios de comunicação, de conversas de surdos? Que queria eu saber de Pompiliu nessa madrugada terrível em que me aproximava cada vez mais do fim do mundo? O que haveria naquela terra de ciganos para se ver e sentir? Gente triste e pobre, como eu? Gente brutal e doce? Quem eram os homens com quem partilhávamos a cabine? Tão jovens e tão preocupados. Tão velhos, já. De mãos gastas pelo desenrasque. Que queria Pompiliu dizer-me de si, da vida na Roménia, e dos motivos que o tinham levado até ali? Que poemas eram os que me dizia? Um poeta romeno? Não faço ideia. Nem os compreendia. Eram uma cantiga que me lia porque queria mostrar-me a beleza, a ordem dessas palavras, como se fosse a última oportunidade de falar, de dizer alguma coisa antes de morrer. Ele, Pompiliu, nascido perfeito a milhares de quilómetros de mim, para quem eu era um nada ao qual convinha deixar claro que nós, romenos, sabemos poesia, não, não somos o fim do mundo.
O comboio arrastava-se na noite cada vez mais clara. Já não falávamos. Dormitava-se como se podia. Menos eu. Olhava através do vidro e fixava sombras. Claro. Escuro. Claro. Uma árvore rápida. Claro. A fachada de um edíficio ao longe. O luar. Escuro. Riscos. Escuro. Que noite desamparada! Viajamos para quê?
A minha mãe diz-me que quando nasci era um bebé muito perfeitinho, mas sei que não é verdade, que nunca foi verdade. Faltou-me sempre qualquer coisa, como um braço ou uma perna; nada que me tenha vedado uma vida relativamente normal, mas que sempre soube faltar-me. Por acaso, uma vez encontrei um estrangeiro que andava a pé na Serra da Estrela. Caminhava há dois anos. Vinha de Sudoeste pela antiga rota das especiarias. Tinha rapado o cabelo com uma lâmina e ferira-se copiosamente. Quando dormíamos juntos ele sussurrava o meu nome, muitas vezes. O meu nome era uma ladainha, uma oração. E eu gostava. Adormecia-me. Isabela, Isabela, Isabela, Isabela, muito baixinho, como um vento. Viajava sozinho à procura de um amor que lhe fugira. A certa altura pensei ser eu esse amor. Delirava. No delírio, julguei sentir crescer o braço que me faltava. Posso jurar que via a carne esticar-se toda, e ficar quase inteira. Ele dizia-me, um dia serás livre, um dia serás livre, um dia serás livre. Vais libertar-te sozinha. Depois seguiu para Norte e nunca mais o vi.
Quando dormimos juntos, nesses momentos, fui livre.
E agora, era livre? Viajava para me libertar no meio do caos, da loucura, da execução sumária? Que mulher tão complicada, meu Deus. Que mulher tão casmurra, tão incapaz de sossegar no lugar que lhe estava destinado.

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