Uma farpa enterrada na mão

Podia ser um tempo qualquer. Podia ser Londres em 1810 ou Moscovo em 1921. Mas não, era Bucareste em 1994.

Um adolescente semi-nu, lazarento, de cabeça rapada, esbofeteia a própria cabeça, grita, grunhe, espojando-se no chão imundo da gare da estação de Bucareste-Norte. Ninguém lhe dá atenção. Dizem, ao nosso lado, não recordo em que idioma, nem quem, que é uma forma de viajar sem pagar bilhete. Fraca desculpa. A mim parece-me um indigente, um desgraçado que nasceu louco, ou enlouqueceu, o mais provável, e não tem outra linguagem, num mundo onde os sãos também gritam e grunhem, na melhor das hipóteses, escondidos.

Na estação principal de Bucareste é possível depararmo-nos com um concentrado da miséria romena. Sobretudo velhos e crianças sozinhos, no limiar da sobrevivência, muito aquém da dignidade, dispostos a tudo para viver mais um dia, por uma questão animal, uma mera questão animal, não importando o risco ou a dor envolvidos. Enquanto arranjarem álcool e cola para consumir até entorpecer, dormirão enrolados no chão da gare ou das vias férreas como matilhas de cães abandonados. Ganindo, levando porrada, cheios de feridas abertas e parasitas.

Os miúdos que aí vivem e mendigam, rodeiam-nos. É o seu território. Querem ser fotografados. Querem receber dinheiro. Observam as máquinas ao peito de S. Não conhecem as daquele tipo. Estão habituados a roubar das automáticas, muito mais sofisticadas. Sabem os nomes do equipamento. Falam com S. sobre o assunto, em rominglês, essas crianças que não têm um metro quadrado de sumaúma sobre a qual estender os ossos. Já estão mortos, ou estarão dentro em pouco; é coisa de um mês, dois, seis... Talvez quando vier o Inverno e inspirarem cola a mais para se manterem quentes dentro de um buraco qualquer.

Apesar de tudo existe nesses rapazes de oito, dez anos, a estranha inocência de quem não pôde ser criança e nunca chegará a adulto. Não importa a idade que têm, e não importa porque não permite defini-los. São pessoas especiais, animais urbanos capazes de comunicar com um único objectivo: viver: acordar, fumar, arranjar comida, roubar, fugir, dormir, acordar. Não importa quem são. São carne e ossos e energia, por enquanto. Os animais da industria da carne pensam quem são ou atiram-se à ração para sobreviver a mais um dia? O instinto não os obriga a sobreviver, quando seria tão mais lógico obrigá-los morrer, a cair de borco e sem remédio?!

Estação de Bucareste-Norte


S. negoceia com os rapazes Coca-Cola em troca de fotos. Sim, aceitam, claro. Excitados, confirmam uns com os outros. É verdade?! Surgem mais rapazes vindos de todos os pontos da gare. Uma multidão de crianças esfarrapadas que ri descontroladamente, com a cara e o cabelo negros do carvão das linhas. Um deles chama-se Ivan. Sei isto e mais nada. Ivan. Pai? Mãe? Asilo? Escola? Não sabemos. Ivan, foto, Coca-Cola. É só.

Entrámos na Roménia de noite, ainda, e a luz do dia apresentou-nos um cenário industrial, repleto de chaminés de fábricas e centrais de produção de energia. Um cenário cinzento de terra infértil, queimada pelo fumo químico. A chegada a Bucareste enervou-nos. Um excesso de gente que se movimentava no comboio, que se apressava a sair, as pessoas lá fora que nos esmagavam, oferecendo-nos alojamento, querendo vender algo e extorquir bagagem desacautelada. Um vespeiro, um bazar oriental, um dormitório de corações com a alma moribunda, diversas filiais das diversas máfias, vícios e tráficos. O desespero, a miséria, a degradação. Quando é que temos comboio de volta? Vamos embora? Ah, não, não. Decidimos que viríamos à Roménia, que queríamos viver esta experiência, fotografá-la e escrevê-la. Quero escrever isto? Não, nem por isso. Se fosse possível, o que queria escrever agora era uma história de amor perdido. A minha disfarçada história do meu amor perdido para sempre. Mas nós sabíamos perfeitamente que encontraríamos a miséria, não sabíamos? E tudo isto é perigoso mas emocionante, não é? Sim, sim, é, claro, muito bem, mas uma coisa é pensar na miséria e no perigo, e outra, encontrá-los de frente.
Vamos embora? Não, não. Estamos em viagem, e viagem é isto, uma farpa enterrada na mão, que tanto dói se a deixarmos como se a extrairmos. Vamos, vamos a isto.

Reencontramos Ivan quando voltamos a Bucureste-Norte no dia da partida. Na altura pareceu-nos o líder do grupo. Era o mais expressivo, o mais bonito, mais sexuado, também. Oferece-se de novo como modelo fotográfico em troca de outra lata de Coca-Cola. S. Fecha negócio. Por mim, tanto faz, desde que não se atrase a partida. Onde está o comboio que nos vai levar dali para fora? Em que linha? Não nos atrasemos.

Após as fotos, Ivan vai-se embora, exibindo a cobiçada lata como um troféu. Um homem sai de um carro, aproxima-se do rapaz, grita-lhe e soca-o no rosto. Expulsa-o. Fita-nos por segundos com cara de muito poucos amigos. Ambos sabem porque espancam e são espancados; nós, não. Assistimos às cenas sem as compreender. Ou melhor, compreendemos que por nossa causa Ivan quebrou uma regra qualquer. Refugiou-se do outro lado da praça, frente à estação. Chora. Na fuga deixou cair a lata de Coca-Cola. Acercamo-nos dele. Queremos devolver-lha. Aquilo parte-nos o coração. Olha-nos com raiva. Insulta-nos. Atira fora a lata enquanto nos responsabiliza pela sova. Pouco depois recupera-a, quando lhe parece possível, e volta a nós pedindo de novo para ser fotografado, mais fotos, mais fotos, mas não na gare, na rua. Mafia, máfia, diz. E vai olhando para todos os lados.

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