Alguém tinha de me comprar VI


Este conto foi publicado no Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, em agosto, setembro e outubro de 2015.

“Deixámos Tete. Crianças foram na escola, cresceram, tiraram curso; Sarmento reformou, depois coração começou de dar problema, e queimou”, resume Florência.
Queimou! Nos últimos anos pouco se dava por ele. Respirava com dificuldade, transferia-se da cama para a cadeira, da cadeira para a cama. Foi encolhendo, deixou de ver televisão, de falar, de comer. Tinha-se ficado na noite anterior, a hora incerta. Florência, que cuidava dele, sentiu-o frio, assim que acordou. Sarmento já tinha abandonado a casa. Compôs o marido, arranjou-se e telefonou aos filhos: só eu e Arlinda nos encontrávamos suficientemente perto para ajudar. Arlinda encarregou-se dos trâmites funerários; eu, de fazer companhia a Florência, conformando-me aos rituais mortuários.
Não é possível fingir afeto pelo meu pai, que mal conheci. Sinto curiosidade. Partiu para África, deixando a minha mãe com dois filhos por criar, obrigada a trabalhar de dia, na queijaria, de noite, na costura, para nos levar à escola e pôr comida no prato. Que tivesse arranjado outra família, não o conhecendo, nunca me fez mossa, exceto essa nódoa inextinguível: a noiva ter a minha idade. Que raio de homem era o meu pai?
Fui conhecendo Florência superficialmente, em breves encontros anteriores, e nas palavras parciais e amarguradas da minha mãe. Nunca tinha havido oportunidade para falarmos sobre o passado, como neste dia de morte. Estamos, pois, sentadas sob o perfume limpo das laranjeiras, cheias de vida, ao ar da tarde, com o morto comum encerrado em casa, à espera que lhe seja dado um destino, tal como ele decidiu o nosso.
Arlinda estaciona, chegando da agência funerária. “Porque não estão com ele, lá dentro?”, pergunta.
“Faz calor e morto está morto, não precisa companhia”, responde Florência.
Arlinda é mulata bonita, muito parecida com a mãe, com olhos rasgados, mas mais magra, mais baixa. Enfermeira no hospital concelhio.
“Vêm já buscá-lo. Acabou como se previa, mãe. O pior já passou”, exclama, e senta-se, sacudindo a tensão.
Ponho-a a par da conversa. “A tua mãe tem estado a contar-me a história do casamento.”
“Prefiro fazer de conta que nada disso aconteceu. Tu consegues entender?”, pergunta Arlinda.
“Só se não fosse nosso pai” – respondo – “Só se lesse no jornal e pudesse dizer, de fora, que as motivações de cada um são um mistério de que nem se dão conta. Se pudesse relativizar através da ideia de que tudo na vida é apenas um ponto de vista. Mas na prática não entendo. Quero dizer: não aceito.”
Florência escuta-nos e sorri, como quem dá o desconto.
Arminda recorda: “Não se podia falar disto. Não respondia. Deixou a mulher e os filhos na terrinha, com intenção de os levar; instalou-se em Moçambique, adaptou-se, comprou a minha mãe… outra criança… e podíamos fazer de conta que era tudo normal?! Se não fosse a guerra civil, ainda hoje estaríamos em Tete! Nunca teria de lá saído, não o empurrasse a preocupação com o nosso futuro; estudos, segurança… Veio comprar este terreno, regressou, vendeu ao desbarato a machamba, e viemos em condições miseráveis, pelos meus 10 anos. Só existiam as laranjeiras. Lembro-me de dormirmos os primeiros dias numa tenda, enquanto construíamos a garagem“, aponta o anexo. “Passámos a viver ali dentro. Fazia frio, mas íamos à escola e não havia guerra. Ele safava-se. Sabia fazer de tudo. Arranjou trabalho e, com ajuda da minha mãe, iniciou a machamba pequena, aqui – era como lhe chamava; machamba, sempre -, e começámos a construir a casa devagar, entre nós, com ajuda dos vizinhos.”
“Foi mais ou menos quando vos conheci, no dia do divórcio…”, recordo. “A minha mãe não o queria ver. Raiva e amor misturados. É que, connosco, Arlinda, ele não se preocupou com os estudos nem com a segurança, futuro, nada.”
“Ele apagou completamente a vida de Portugal. Fomos à Covilhã para assinar os papéis, resolver o imbróglio do divórcio. Nunca mais lá voltou. Saiu da serra para Tete e de Tete para Malveira. Alguém lhe deve ter contado que por aqui se encontravam terrenos baratos e foi o que quis ouvir… Não conhecia a Malveira, mas a Covilhã estava enterrada. Não podendo viver em Tete, ficou aqui como no exílio. Não saía.”
“Não apagou vida de Portugal”, interrompe Florência. “Falava pouco. Só isso”
Nada de lágrimas. Melhor. Conversamos sem tristeza. “Estava velho. Cumpriu o seu tempo”, concordamos.
Chegam dois agentes funerários desfazendo-se em pêsames. Acompanhamo-los ao quarto onde o cadáver permanece. Encostam a porta. Sento-me no sofá e espero. Pela porta entreaberta, consigo perceber os seus movimentos dentro do quarto, enquanto preparam o corpo, o enfiam num comprido saco de napa no qual o tiram de casa, como uma trouxa de roupa suja. O meu pai não era roupa suja. Não o conhecia, não o amava, mas não era roupa suja, pois não?!
“Afinal, como era ele?”, insisto, assim que os homens saem.
Florência encolhe os ombros. “Era branco.” Pensa. “ Trabalhava muito”.
“Para a minha mãe é tudo muito simples. Ou muito antigo. Habituou-se. Não questiona. Nós é que pensamos demais, acha ela. Bem, o velório é à noite, na igreja da vila; o funeral, amanhã à tarde. Podemos estar na casa mortuária a partir das 17.”
“Funeral amanhã não pode ser”, responde Florência.
“Não pode ser?!”, olhamo-la.
“Sarmento precisa ir em Tete. Terra dele, mesmo, era lá.”
“Lá?! A tua terra é que é lá! Isso é uma transladação. Tinha de ter explicado aos homens da funerária. Envolve papelada, autorizações, viagens de avião… No máximo vai para a Covilhã... Nada de complicações, valha-te Deus, mãe!”
“Arlinda, - responde Florência, sem sorrisos - agora branca sou eu! Sarmento volta onde foi tirar-me. Manda queimar corpo na casa do cemitério. Eu vou em Tete, levo na mala. Chego na aldeia, enterro caixa no lado do embondeiro.” Eis o plano de Florência, bem estudado.
 Silêncio. Entreolhamo-nos.
“Não é permitido, mãe! É ilegal. Não podemos. E ele nunca disse que queria ficar sepultado em Tete.”
“Ninguém fala de coisas de morte. Tu não ias perceber. Vais desculpar, mas Sarmento volta. Tirou, tem de devolver. ”
Há um silêncio.
“Imaginando que o levavas… depois voltavas?”, pergunta Arlinda.
”Arlinda, pensa bem, onde está minha família, estes anos todos?” - e continua – “Sarmento falava pouco, mas falava. Vivemos 40 anos…”
“E deixou carta para ti e teu irmão.” – é a mim que se dirige. “Primeira gaveta do armário do quarto. Envelope castanho.”
Eu e Arlinda corremos ao quarto, e lá está, por debaixo das camisas, um envelope em papel envelhecido, amarrotado. Abro-o com ansiedade e medo. Tiro primeiro uma trança, já despenteada, do cabelo castanho liso da minha mãe; depois uma fotografia da nossa família desfeita: a minha mãe com o meu irmão ao colo; ele, segurando-me nos braços, recém-nascida; e, por último, uma folha dobrada de papel quebradiço. Dentro dela guardou uma fina mecha com três centímetros de cabelo grisalho, atado com linha azul, e escreveu, com caligrafia tremida, apenas uma frase: “A gente leva a vida, mas depois a vida leva a gente”. E assinou, João Maria Sarmento, vosso pai.
A minha herança.

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