Mijo

Foto: Bruno Boudjelal


Porque me leva todo o presente para a experiência do passado? Precisa a vivência presente de validação ou apenas se reconhece na repetição?
- Quando chegarmos, tenho prioridade na ida à casa de banho - esclareceu Cláudia enquanto acelerava. 
- Certo, mas não fizeste o xixi todo no campo? - perguntei, brincando.
- Foi uma mija parcial.
Ri-me. Olhei para fora. Estava escuro e não se via nada. Na cabeça vi-me a chegar a casa com a minha mãe. As alucinações que não me afligem, apenas me ocupam. O meu pai estacionava o carro, nós corríamos para a casa de banho, para ver quem chegava primeiro, ambas aflitas. Chegava eu, mas baixava as cuecas e ocupava o bidé, a rir, a rir, mijando no espaço não autorizado, enquanto ela me dizia, complacente, "aí não podes, menina; não se faz xixi no bidé, menina." E eu, "agora já está."
Nessa altura ainda não sabia que ela ia morrer, apenas que se morria, mas não ela nem eu. Não podia conceber que um dia a sua voz, tão clara e viva no meu cérebro, como a ouço neste momento, não estaria comigo nunca mais. Carne prolongada de mim. A carne inimiga mais amiga.  A voz vinda do passado. Uma doçura firme, "não podes fazer, não quero que faças, não te deixas dobrar, menina". Amantes inimigas sem explicação, mijando juntas pela eternidade fora, rindo, rindo e mijando, um retrato parado. Não são rosas nem vinho nem ouro nem jasmim, mas mijo louro, que alívio. Este retrato parado da minha mãe que me amou sem mansidões nem afetos. 
Cláudia estaciona à porta e corre para casa. Saio devagar, esvazio a bagageira. Sorrio enquanto recordo a voz da minha mãe. Um dia todos percebemos que o tempo acaba. E está certo.

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