O estilo das línguas e o lugar do meio

Imagem recolhida em:

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Levantei-me para deixar passar o senhor do lugar 28A, junto à janela, no voo de Paris para Lisboa. Eu estava no B, a meio. No C, a coxia, viajava um homem jovem de aspeto asiático que falava inglês. 

Não faço check in on line porque tenho a certeza que não me cabe a mim fazer aquilo que é dever dos funcionários das companhias aéreas, por isso calham-me agora lugares do meio. Acho que é uma sansão de que sou alvo. 

Antes de passar para o lugar junto à janela o senhor do lugar 28A perguntou-me se falava inglês. Respondi que sim. Ele perguntou-me se não me importava de trocar para um outro lugar B, mas numa fila da frente. Quando terminou a pergunta eu respondi:

- O senhor fala português? – tive a certeza de que iria ter como resposta:

- Sim.

A minha certeza na resposta assenta na aptidão desenvolvida pela proficiência linguística na minha língua materna. Conheço-a tão bem, ela faz tão parte de mim, fonética, fonológica e semanticamente que a escuto no subtexto das línguas estrangeiras faladas por outro sujeito que a tenha como língua dominante. Escutei-a na pergunta do ocupante do lugar 28A, quando se me dirigiu em inglês. 

A nossa língua materna é o esqueleto ao qual se seguram todas as que vierem a seguir. Precisamos de nos socorrer dela para reproduzir o melhor que conseguirmos a fonética de línguas estrangeiras. Há sons que não existem na nossa língua ou que são raros. Eu nunca saberei pronunciar um “th” de thank you ou um “h” aspirado de hot milk como um falante de inglês como língua materna. O que ouvirão eles quando eu articulo estas palavras o melhor que o meu aparelho vocal me permite?

A sibilante do nome da minha cadela Marisol enuncia-se em castelhano de uma forma que me é bastante adversa. O “s” de Marisol é transformado pelos falantes de castelhano num som que parece o “th” do inglês thank you.

O ano passado, em viagem por Espanha com um amigo passamos por uma localidade chamada Torrejón el Rubio. Li o nome na placa e ele corrigiu-me o castelhano. Fomos o resto da viagem a rir. Eu não conseguia pronunciar os três diferentes “r” deste topónimo.  Muito menos seguidos. Um deles formado no fundo da garganta, como se estivesse a puxar expetoração. Rimos bastante e desisti.

Na verdade, gosto de perceber a língua materna do falante no subtexto da língua que utiliza para comunicar. É uma marca de autenticidade que me diz “estou agora a ser isto, mas eu também sou aquilo.”

Os idiomas, para além de serem códigos de gramática, vocabulário e fonética que temos de aprender, têm também o seu ritmo, tom, altura e duração. Como a música. Cada idioma tem ainda o seu estilo. Por isso, por muito bem que um português fale inglês mantém um bonito estilo português detetável, mesmo que se exprima no pior slang.

Regressando à mudança de lugar no avião, acabei por ir parar a um lugar B, entre um cozinheiro inglês gordinho, cujos emails recebidos tinham todos a palavra cooking e um jovem português igualmente gordinho que passou a viagem a trocar mensagens por Whatsapp ou a dormir. Invejei a última parte. 

O senhor do lugar 28A queria trazer para o seu lado a namorada que se encontrava no 11B, para onde me dirigi. Descobri ali uma senhora entalada, respirei fundo e disse-lhe em inglês:

- Minha senhora, pode ir juntar-se ao seu namorado no 28B. Eu fico no seu lugar.

Os dois gordinhos também respiraram fundo ao olhar para o meu tamanho. Penso que vivemos juntos uma experiência com significado que felizmente durou apenas duas horas e meia.

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