Questões do nosso tempo 1 - Domesticação



Por que nos calamos? (anónimo)
Por que temos medo de ser felizes e de viver? (sete e pico)

As questões que me foram deixando nesta caixa de comentários são quase todas universais, e não exclusivas do nosso tempo. Tentarei responder, agrupando-as por afinidades. Hoje respondo às que refiro em epígrafe.

A minha mãe tem um lema do qual discordo profundamente, mas que já pratiquei em desespero. Diz ela que o calado ganha sempre. Diz, ainda, que o que fica por dizer nunca se perde.

A minha mãe nasceu no início do ano de 1924, e atravessou, sem passar fome, os principais conflitos políticos, económicos e sociais do século XX. Tem quase um século de vida lúcida e atenta; creio que devemos conceder-lhe algum crédito.

Embora tenha nascido numa economia agrária, foi simultaneamente agricultora e operária, por necessidade de sobrevivência, como o seu pai e irmãos. Conta que, quando saíam da fábrica de fiação e tecidos, onde trabalhavam 12 horas por dia, vinham a pé para casa, ceavam, e para digerir melhor a sopa de couves e a sandes de toucinho, sachavam e semeavam pela noite fora, à luz de um candeeiro de petróleo.

A minha mãe é aquela que no mundo primitivo se designa como a "mais velha". Nenhum de nós faz a menor ideia do que realmente foi a sua vida. Do trabalho, angústias e humilhações que suportou; do que teve de calar para sobreviver e por delicadeza, para não magoar o outro.

Eis onde pretendia chegar. Calar constitui uma estratégia de sobrevivência como outra qualquer. Implica passar despercebido, viver invisivelmente, aguardando uma oportunidade para espreitar para fora da toca. A perversão da estratégia é que quem cala demais, quem cala uma vida inteira já não quer olhar para fora, já não consegue. Desaprendeu-o.

Os portugueses não são o único povo que cala, embora se revelem exímios no ofício. Calam-se socialmente, porque não querem parecer mal, porque precisam de se integrar num grupo. O silêncio confere uma impressão de seriedade, logo, de credibilidade. Os calados parecem-nos austeros, nobres, de confiança. São, assim, escolhidos para os cargos respeitáveis, mesmo que se calem porque não têm nada de interessante a dizer.

Calam-se politicamente, porque emitir uma opinião implica um compromisso, e os compromissos custam caro em épocas de mudança no poder. Calam-se, por outro lado, porque consideram que a sua voz não tem importância. É uma herança do fascismo que levaremos alguns anos a alterar. Os calados acreditam que não vale a pena falar: nada mudará. Em qualquer destas aceções calam-se por medo da exposição e do compromisso.

Calar é quase sempre uma morte, porque quem cala não participa na vida. É paradoxal que uma estratégia de sobrevivência possa configurar uma morte, mas a maior parte de nós foi domesticada pela família e pelos pares sociais para se transformar em zombie. Não falar, não pensar, não sentir, permanecer afastado da confusão, sendo que a confusão é a vida.

Viver calado não confere grande alegria, mas tem a vantagem de não desestabilizar a vidinha. Contentamo-nos com isso: a vidinha. Se tivéssemos acesso à inteireza da vida correríamos o risco de uma overdose de oxigénio.


Observo muito as crianças, ainda dotadas de espontaneidade. Observo igualmente os adultos que as mandam calar, a pretexto do seu bem. O leque do que as crianças podem dizer e fazer é ridiculamente reduzido, embora se tenha vindo a alargar nas útlimas décadas. Já não me lembro do meu processo de domesticação. Acho que não tenho memória disso, e, de qualquer forma, os livros e os filmes estragaram tudo, porque me devolveram, parcialmente, ao estado selvagem. Idealmente, deveríamos comunicar uns com os outros como se fôssemos crianças eternas. Diríamos, "gosto de ti", "não gosto de ti", "tens pêlos no nariz". Perguntaríamos, como um miúdo me perguntou no outro dia, "vens sempre tu passear com os cães: não vêm com o pai porquê?" Mas para isso seria necessário que neste mundo não se considerasse uma ofensa ter pêlos no nariz ou noutro lugar qualquer. Incompreensivelmente, é.

Está muto em voga afirmar que os jovens são hoje muito mal educados. Alguns serão. Mas sempre houve jovens mal educados. Estou convencida que a maior parte das acusações de má educação advêm do fato de se exprimirem muito livremente. Dizem o que pensam, e tem uma acentuada consciência dos direitos que lhe assistem. Não se calam. Que isto e mais aquilo. Que é injusto, que as regras estão erradas.

Sei que poucos concordarão comigo, sobretudo em contexto escolar, mas agrada-me a sua predisposição para a desobediência civil, e devo dizer que lhes encontro, muitas vezes, um raciocínio lógico, coerente, e imbatível sentido de justiça. Irrita-nos que sejam capazes de nos calar com a evidência dos seus argumentos, mas não é assim tão mau que aprendam a refilar. Gosto de os ouvir, e penso que o nundo poderá, quem sabe?!, vir a tornar-se num lugar menos doentio.

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