Ao sábado havia milando*

Ao sábado trabalhava-se, e o meu pai pagava a semana ao final da tarde.
Morávamos no terraço de um prédio da 24 de Julho. Como o prédio não tinha telhado, o rectângulo de cimento que constituía a caixa do elevador, elevava-se nu acima do chão, como uma espécie de torre de vigia. Subiámos seis degraus bem altos para aceder ao portão dessa construção que metia medo. Nunca aí entrei, mesmo quando os elevadores se avariavam, embora raramente os elevadores avariassem.
Ao final da tarde, o meu pai chegava ao terraço com os pretos todos, "os desenrascados" os "mandriões" e os assim-assim. Eles sentavam-se nos degraus da caixa do elevador, constituindo, assim, um anfiteatro de assalariados. Falavam a língua deles. Raramente português. Metiam-se comigo, na língua deles, ou não. Pediam-me para perguntar isto e aquilo ao meu pai. Pediam-me copos de água. Às vezes a minha mãe dava-lhes sandes ou bolachas. Faziam-me perguntas cujo objectivo eu não entendia.
Se era véspera de dia importante, o meu pai era capaz de dar ordem para distribuir copos de vinho ou cervejas com sandes de carne. Esses momentos eram bons.

O meu pai sentava-se no topo da mesa da sala com os livros e blocos de apontamentos onde assentara o trabalho de cada um, mais o dinheiro para pagar. Havia, por vezes, entre o meu pai e a minha mãe, alguma conferência sobre o valor dos pagamentos a efectuar, sendo que ela tentava acalmar-lhe os ânimos; dizia-lhe, "não faças isso", dizia-lhe, "fazes mal", dizia-lhe, "só vais arranjar problemas". Os negros esperavam cá fora, à sombra, conversando.

Lembro-me que eram finais de tarde todos de ouro, de uma serenidade animada. Começava a ficar mais fresco. Os corpos largavam a escravidão do trabalho como se larga a pele velha. No dia seguinte seria domingo e ao domingo não se falava em trabalho. Saía-se, comia-se, bebia-se, estava-se à sombra, ouvia-se rádio.

Mas, no meu terraço, a essa hora, apesar de tudo, algo tremia no ar; era medo e incerteza.
Gostava de ver ali os pretos do meu pai. Todos juntos pareciam muitos. Descansavam um pouco. Eram homens diferentes uns dos outros. Uns mais novos, outros velhos, com a carapinha a embranquecer. Uns calados e sérios. Outros sorrindo. Alguns com medo. Outros falando como doidos. Rondava-os, enquanto o meu pai fazia as contas; ia lá dentro confirmar que o meu pai estava no mesmo sítio, chateado, praguejando; regressava ao anfiteatro de negros, que se impacientava com o tempo que as contas demoravam, que queria ir-se embora, que estava a demorar; voltava ao meu pai, que estava a demorar; o meu pai muito tenso, eles que esperassem; corria ao anfiteatro, tinham de esperar. Os fins de tarde de ouro retalhavam os nervos a qualquer um.

A certa altura, o meu pai começava a chamá-los, não sei porque ordem. Podia ser a da recolha que fazia, às segundas de manhã, nas bombas do Xipamanine, ou ao calhas. O procedimento era simples. Os negros iam à sala, e o meu pai entregava-lhes o dinheiro. Às vezes eles contavam e reclamavam. O meu pai gritava-lhes que nessa semana tinham estragado um cabo ou chegado tarde ou sornado ou mostrado má cara ou era só porque lhe apetecia castigá-los por qualquer coisa que tinha metido na cabeça. Não sei, tudo era possível. Gritava sempre. Para além de ter mau génio nestas coisas, tinha os seus preferidos, e aos seus preferidos pagava sempre o acordado sem descontos. Depois havia os mais novos, recém-chegados, ou aqueles em quem o meu pai não confiava. E com esses havia muitas vezes milando. Ainda não tinham percebido as regras, que eram só duas: receber e calar. Não era preciso agradecer. Mas se agradecessem, começariam a subir na tabela de preferidos. A única hipótese de não haver milando, era eles meterem o dinheiro recebido no bolso das calças rasgadas e saírem, cabisbaixos. Se reclamavam, havia milando, e não eram poucas as vezes em que saíam da sala a pontapé e com um murro nos queixos. Havia milando bravo. Ameaçavam o meu pai, o que o irritava ainda mais. Eram expulsos. Eu e a minha mãe, tremíamos. Entre os negros que ainda esperavam receber, crescia um silêncio tenso. Depois, tudo se passava muito depressa. O meu pai chamava o resto dos nomes, pagava e punha-os a andar. A seguir ficava doente para o resto da noite.

Julgando que agia pelo bem da nação e daquela raça, que tanto precisava de ordem e civilização forçada, o meu pai tinha o condão de transformar os finais dourados das tardes de sábado num poço escuro de medo e raiva.


* Acho que quer dizer algo como chatice, problema, confusão.

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