Imortal II
Sim, é verdade, há duas semanas sonhei que íamos ambos no automóvel que um de nós conduzia. Encontrávamo-nos muito juntos, como se o carro fosse pequeno e o espaço apertado. Os nossos corpos muito encostados, quase enfiados um no outro, como se fôssemos gémeos siameses, e fazíamos de conta que não dávamos por isso. Conversávamos animadamente, sem atrito, sobre assuntos profissionais, culturais, políticos, como sempre nos aconteceu. Sentia vontade de o beijar na face, de fazer um gesto que pudesse expressar o amor que lhe pertence, mas não podia. Se levantasse a minha mão para tocar o seu pulso causaria o fim desse momento de harmonia condicional, tão frágil. Por isso, deixei-me ir, embalada na conversa, enquanto o carro circulava por estradas que não vêm nos mapas, e trocávamos ideias, felizes, como se nunca nos tivéssemos amado, ou como se, podendo amar-nos, tivéssemos abdicado dessa possibilidade. Talvez ele estivesse distraído. Talvez não se apercebesse de que estávamos assim tão próximos, mas isso bastava-me.