Parece que és parvo!

Avistamento, 2009 [foto obtida através de imagem visionada na televisão]


As pessoas que conheço e que leio manifestam o desejo de compreender o amor. Defini-lo seria ainda melhor. O amor romântico, tal como a existência de Deus, não se pode provar, o que lhe confere mistério. Torna-se dogma. Ou se tem fé ou não.
Há quem garanta que o amor romântico não existe. Há quem diga que, tal como Deus, o seu espírito é eterno, omnipresente e omnipotente. Eu, tal como as outras pessoas aqui da vizinhaça, e mesmo os estudiosos do meu concelho, não sei explicar essa variante do amor. Gostaria. Esforço-me. Mas o máximo que posso oferecer-vos sobre o tema é a minha experiência de avistamento. No continente americano vêem-se muitos ovnis, e nos Himalaias, de vez em quando,o Yeti sai da toca.... No meu caso, houve momentos e que avistei o amor romântico, de perto, como se visse um anjo à minha frente, mas sem perceber que o era.
Por exemplo, sei que os meus pais gostavam de conversar deitados na cama. Passavam assim muitas tardes, ao fim-de-semana, depois do almoço. Tagarelavam até se cansarem e esse seu ruído acalmava o meu coração.
Também havia momentos em que o meu pai ficava a olhar para a minha mãe e ria-se todo. Ela perguntava-lhe, por que é que estás a olhar?, e ele não lhe respondia, continuava a fitá-la sorrindo com a mesma honestidade malandra, até que ela lhe dizia, a rir, parece que és parvo!
Pela manhã, a minha mãe tinha o hábito de lhe calçar as peúgas com ele ainda deitado, o que me parecia o cúmulo da sua servidão e da preguiça dele. O meu pai tinha, como eu, um acordar doloroso. Era teimoso para sair da cama e a minha mãe ia-o adiantando. Mas o que eu não compreendia era que também o calçasse e lhe atasse os atacadores. Ele é que o devia fazer, o abusador. E ela, revoltar-se. Muitos anos depois compreendi que o meu pai nunca se teria calçado decentemente se a minha mãe não o fizesse por ele: a barriga dilatada não o deixaria baixar-se.
Muitos dirão que nada, nada disto é o amor. Eu creio que havia entre eles a confiança e intimidade de quem se ama sem palavras, sem conceitos. Precisavam de se sentir juntos, e percebia-se que apreciavam essa proximidade. Não havia ali abstracções nem parábolas. Era aquela unidade. Tem uma certa graça, hoje, pensar que casaram para formar família, para se entreajudarem, e que nessa intenção o amor nunca foi uma certeza. O amor não os juntou, mas o que construíram ao longo do tempo, permitiu-me conhecê-lo. Apesar de ter lido muitos livros sobre sociologia, e aprendido diversas teorias sobre a história da humanidade, bem como outros assuntos bastante valorizáveis, que os meus pais nem sonharam conhecer, o amor, para mim, estava destinado a ser, para o resto da vida, esse precoce avistamento da sua união.

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