Até ao osso
Recostei-me, peguei no bisturi e nas compressas, e, devagarinho, tracei um risco de sangue na anca esquerda. Primeiro, só um corte superficial sobre a pele, na diagonal.
Ensopei o sangue e continuei. Um corte mais fundo, atingindo uma camada de gordura amarela, carne, ainda não o osso, a minha meta.
Pretendia substituir a cartilagem da articulação do fémur com a bacia. Não seria cirurgia fácil, mas já tinha visto na televisão e na internet. Não esperava facilidades.
Fui tocando na minha carne com as mãos já bastante sujas do meu próprio sangue. Era viciante poder tocar o meu corpo por dentro, as partes físicas que me formavam e permaneciam dentro do invólucro da pele. Aquela era a minha gordura, aqueles eram os meus músculos, vasos, artérias. Sobretudo, aquele sangue todo que me esforçava por estancar. Bem bonitos. Era tudo só meu. Eu. Uma beleza diferente, é certo, mas beleza.
Afundei o bisturi, cortando camadas até ao osso, e ali estava ele como a cabeça de um bebé a ser parido. Branco. A cartilagem visivelmente danificada.
Limpei cuidadosamente o sangue para poder explorar a zona. Vê-la e tocá-la. Queria tocar com os meus dedos nos meus ossos, nos nervos, nas veias... não vale a pena fingir: queria tocar o meu corpo por dentro, tal como existe na sombra eterna dessa casa fechada, porque lá dentro também sou eu, e nunca vi, não conheço. O que posso imaginar ou intuir não me basta. Como sou? Feita de quê? A minha carne é macia? O meu sangue é grosso?
A urgência de proceder à substituição da cartilagem do fémur serviu-me lindamente para explorar esse meu lado desconhecido.
Pouco tempo antes, com sorte, tinha conseguido obter no mercado negro, uma peça protésica ainda a ser testada num laboratório japonês. Não era mera candonga. Tratava-se de material cirúrgico de ponta, totalmente experimental, cujo objectivo seria substituir tecidos humanos, neste caso, cartilagem. Tanto quanto quando podia observar, parecia-me borracha de aço inoxidável. Uma superfície aderente ao osso, mediante colagem ou aparafusamento, bastante rígida, contudo flexível à carga. Cartilagem artificial. Uma inovação da engenharia humana, avultadamente subsidiada pelas forças armadas norte-americanas, e ali a trinta centímetros de fazer parte do meu corpo ferido pelo uso quotidiano.
Não posso dizer que tenha sido difícil de conseguir, mesmo para a filha de um electricista-montador. Admito que foi caro. Admito que gastei naquilo as minhas economias e as de um amigo, emprestadas à taxa zero. Quanto ao resto, vivemos em Portugal, e há sempre alguém disponível para contactos. O nosso vizinho de cima poderá ser sobrinho do general x, que é amigo do deputado y, que conhece uma forma de entrar em contacto com empresário h, que telefonará ao intermediário k, agente de seguros ou vendedor da Oriflame, tanto faz. A cartilagem artificial chegou-me por correio normal, num pequeno contentor de plástico no qual se criara a quantidade certa de vácuo.
Preparei o cenário. Adquiri as compressas, o soro fisiológico, bisturi, agulha e linha de sutura, tudo isto em farmácias diferentes. Pedi a um amigo enfermeiro que me arranjasse anestésico local no hospital privado onde trabalha. A dose suficiente para uma anca, cerca de hora e meia de anestesia, uma mulher de tantos quilos, sem problemas de saúde… cá veio ter o suficiente.
Testei a posição corporal que iria manter, a distância a que os objectos cirúrgicos ficariam das minhas mãos e a ordem pela qual estariam dispostos. Fui meticulosa como qualquer psicopata de pacotilha, com uma diferença essencial: eu não era psicopata, apenas uma mulher habituada a resolver os assuntos à sua maneira.
A questão da anestesia preocupava-me relativamente. Injectar-me seria fácil, o problema encontrava-se nas quantidades, e, sobretudo, no espaço que deveria mediar entre cada injecção. Seria preferível esperar que passasse o efeito da primeira dose para me injectar com a segunda, correndo o risco de suportar uma quantidade excessiva de dor, que me incapacitasse de prosseguir, ou correria menos riscos se me injectasse a espaços temporais bem marcados, com doses menores? O meu problema era não ter quatro mãos. Sabia de antemão que, mesmo tomando coagulantes, iria precisar de um par suplementar delas a estancar sangue, quanto me injectasse com anestésico. Apesar de tudo, perdi o amor à hemorragia e escolhi a segunda. Antes de começar teria já preparadas cinco pequenas doses que injectaria de 20 em 20 minutos, eventualmente 30. Isto era um trabalho solitário para o qual não poderia convocar ninguém.
Preparei o sofá, no qual me deitei de lado, com o joelho esquerdo ligeiramente dobrado. E ali estava eu com o meu formidável corpo. Nua. Rasgada na anca. O fémur exposto. Tocando os meus ossos, pressionando a minha gordura com o indicador, e com o mesmo testando a elasticidade dos músculos. Magnífica arquitectura, o corpo. Perfeita. Irrepetível. Toquei a minha carne com ternura, por ser minha, por me fazer tão bem.
Dei um puxão forte ao fémur para o desencaixar da bacia. Isso, senti, mesmo anestesiada. Senti, mas ignorei a dor, porque havia ali um trabalho a fazer-se.
Retirei a cartilagem artificial da embalagem, puxei o adesivo que protegia a substãncia colante, manchando de sangue tudo em que tocava, e fi-la aderir à cartilagem danificada que nascera comigo. Alisei muito bem com a palma da mão. Nada de pregas. Aquele forro artificial tinha de rodar no côncavo da bacia sem atritos. Oh, que maravilha, iam acabar-se as dores.
Reencaixei o fémur. Testei a articulação movimentando a perna, e tudo parecia funcionar normalmente. Obra concluída. Podia mandar vir uma garrafa de champanhe, se estivesse no hotel. Não estava.
Olhei uma última vez para os meus ossos e sangue, e preparei-me para fechar com cuidado todo o caminho aberto, suturando as camadas cortadas até chegar à pele, cosendo-a como se fizesse um pesponto numa bainha.
A desarrumação imperava, mas a anestesia ainda não tinha passado. O melhor seria fazer o penso, ligar a anca, e ir-me deitar um bocado a descansar. A posição tinha sido difícil de manter. Não era coisa que fizesse todos os dias, e sentia-me estafada. Passei pela cozinha, peguei nas caixas de Nolotil e de Clamoxil, levei-as para o quarto, deitei-me já com as cápsulas no bucho e pensei, antes de adormecer, que se lixe a sala, a mulher-a-dias vem amanhã e convém recuperar disto o melhor possível, que para a semana quero operar a anca direita.
Ensopei o sangue e continuei. Um corte mais fundo, atingindo uma camada de gordura amarela, carne, ainda não o osso, a minha meta.
Pretendia substituir a cartilagem da articulação do fémur com a bacia. Não seria cirurgia fácil, mas já tinha visto na televisão e na internet. Não esperava facilidades.
Fui tocando na minha carne com as mãos já bastante sujas do meu próprio sangue. Era viciante poder tocar o meu corpo por dentro, as partes físicas que me formavam e permaneciam dentro do invólucro da pele. Aquela era a minha gordura, aqueles eram os meus músculos, vasos, artérias. Sobretudo, aquele sangue todo que me esforçava por estancar. Bem bonitos. Era tudo só meu. Eu. Uma beleza diferente, é certo, mas beleza.
Afundei o bisturi, cortando camadas até ao osso, e ali estava ele como a cabeça de um bebé a ser parido. Branco. A cartilagem visivelmente danificada.
Limpei cuidadosamente o sangue para poder explorar a zona. Vê-la e tocá-la. Queria tocar com os meus dedos nos meus ossos, nos nervos, nas veias... não vale a pena fingir: queria tocar o meu corpo por dentro, tal como existe na sombra eterna dessa casa fechada, porque lá dentro também sou eu, e nunca vi, não conheço. O que posso imaginar ou intuir não me basta. Como sou? Feita de quê? A minha carne é macia? O meu sangue é grosso?
A urgência de proceder à substituição da cartilagem do fémur serviu-me lindamente para explorar esse meu lado desconhecido.
Pouco tempo antes, com sorte, tinha conseguido obter no mercado negro, uma peça protésica ainda a ser testada num laboratório japonês. Não era mera candonga. Tratava-se de material cirúrgico de ponta, totalmente experimental, cujo objectivo seria substituir tecidos humanos, neste caso, cartilagem. Tanto quanto quando podia observar, parecia-me borracha de aço inoxidável. Uma superfície aderente ao osso, mediante colagem ou aparafusamento, bastante rígida, contudo flexível à carga. Cartilagem artificial. Uma inovação da engenharia humana, avultadamente subsidiada pelas forças armadas norte-americanas, e ali a trinta centímetros de fazer parte do meu corpo ferido pelo uso quotidiano.
Não posso dizer que tenha sido difícil de conseguir, mesmo para a filha de um electricista-montador. Admito que foi caro. Admito que gastei naquilo as minhas economias e as de um amigo, emprestadas à taxa zero. Quanto ao resto, vivemos em Portugal, e há sempre alguém disponível para contactos. O nosso vizinho de cima poderá ser sobrinho do general x, que é amigo do deputado y, que conhece uma forma de entrar em contacto com empresário h, que telefonará ao intermediário k, agente de seguros ou vendedor da Oriflame, tanto faz. A cartilagem artificial chegou-me por correio normal, num pequeno contentor de plástico no qual se criara a quantidade certa de vácuo.
Preparei o cenário. Adquiri as compressas, o soro fisiológico, bisturi, agulha e linha de sutura, tudo isto em farmácias diferentes. Pedi a um amigo enfermeiro que me arranjasse anestésico local no hospital privado onde trabalha. A dose suficiente para uma anca, cerca de hora e meia de anestesia, uma mulher de tantos quilos, sem problemas de saúde… cá veio ter o suficiente.
Testei a posição corporal que iria manter, a distância a que os objectos cirúrgicos ficariam das minhas mãos e a ordem pela qual estariam dispostos. Fui meticulosa como qualquer psicopata de pacotilha, com uma diferença essencial: eu não era psicopata, apenas uma mulher habituada a resolver os assuntos à sua maneira.
A questão da anestesia preocupava-me relativamente. Injectar-me seria fácil, o problema encontrava-se nas quantidades, e, sobretudo, no espaço que deveria mediar entre cada injecção. Seria preferível esperar que passasse o efeito da primeira dose para me injectar com a segunda, correndo o risco de suportar uma quantidade excessiva de dor, que me incapacitasse de prosseguir, ou correria menos riscos se me injectasse a espaços temporais bem marcados, com doses menores? O meu problema era não ter quatro mãos. Sabia de antemão que, mesmo tomando coagulantes, iria precisar de um par suplementar delas a estancar sangue, quanto me injectasse com anestésico. Apesar de tudo, perdi o amor à hemorragia e escolhi a segunda. Antes de começar teria já preparadas cinco pequenas doses que injectaria de 20 em 20 minutos, eventualmente 30. Isto era um trabalho solitário para o qual não poderia convocar ninguém.
Preparei o sofá, no qual me deitei de lado, com o joelho esquerdo ligeiramente dobrado. E ali estava eu com o meu formidável corpo. Nua. Rasgada na anca. O fémur exposto. Tocando os meus ossos, pressionando a minha gordura com o indicador, e com o mesmo testando a elasticidade dos músculos. Magnífica arquitectura, o corpo. Perfeita. Irrepetível. Toquei a minha carne com ternura, por ser minha, por me fazer tão bem.
Dei um puxão forte ao fémur para o desencaixar da bacia. Isso, senti, mesmo anestesiada. Senti, mas ignorei a dor, porque havia ali um trabalho a fazer-se.
Retirei a cartilagem artificial da embalagem, puxei o adesivo que protegia a substãncia colante, manchando de sangue tudo em que tocava, e fi-la aderir à cartilagem danificada que nascera comigo. Alisei muito bem com a palma da mão. Nada de pregas. Aquele forro artificial tinha de rodar no côncavo da bacia sem atritos. Oh, que maravilha, iam acabar-se as dores.
Reencaixei o fémur. Testei a articulação movimentando a perna, e tudo parecia funcionar normalmente. Obra concluída. Podia mandar vir uma garrafa de champanhe, se estivesse no hotel. Não estava.
Olhei uma última vez para os meus ossos e sangue, e preparei-me para fechar com cuidado todo o caminho aberto, suturando as camadas cortadas até chegar à pele, cosendo-a como se fizesse um pesponto numa bainha.
A desarrumação imperava, mas a anestesia ainda não tinha passado. O melhor seria fazer o penso, ligar a anca, e ir-me deitar um bocado a descansar. A posição tinha sido difícil de manter. Não era coisa que fizesse todos os dias, e sentia-me estafada. Passei pela cozinha, peguei nas caixas de Nolotil e de Clamoxil, levei-as para o quarto, deitei-me já com as cápsulas no bucho e pensei, antes de adormecer, que se lixe a sala, a mulher-a-dias vem amanhã e convém recuperar disto o melhor possível, que para a semana quero operar a anca direita.