O cão do preto era branco
O raio do cão do preto era branco. Era branco no pêlo de arame, no céuzinho rosa da boca, nas unhas, na pelezinha da barriga branca-rosa. O cão do preto parecia um bebé de branco, mas tinha fome. Os bebés dos brancos não tinham fome, nem se viam bem, encafuados em roupas e cestinhas forradas. Eu nunca pude ver bem um bebé branco, mas aos cães brancos dos negros tinha muito acesso, e aos bebés nus que as mamanas traziam atados às costas ou ao peito, enquanto trabalhavam ou caminhavam. Os meninos dormentes, siameses dos corpos da mãe, saídos da barriga, mas ainda vigorando numa aliança de apenas um corpo. Deixavam cair a cabeça sobre o ombro da mãe, porque o calor dos corpos e os movimentos de fêmea hipnotizavam-nos. Os bebés negros eram uma carne animal que demorava a acordar, que se ia criando às costas, sugando calor do sol e o da mãe, respirando o ar terroso, o ar queimado do capim ardido pela noite, e o cheiro enjoativo das hormonas materna; sugando a teta morna. A teta caída, mole, muito doce, macia, que apetecia lamber toda. E depois, os meninos, nesse ventre fora do ventre, abriam os olhos, falavam, queriam andar, e tudo se complicava.
Lá em minha casa dávamos comida ao cão branco do preto. Eu tinha-o trazido para dentro do quintal. Arranjávamos qualquer coisa dos nossos. O animal deliciava-se enchendo a pança. Começou a engordar. O que dariam eles a comer ao escanzelado do Pirata? O meu pai dizia que os pretos não tratavam bem os cães. Andava ossudos de volta das palhotas, comendo os poucos restos, lambendo malgas. Para que queriam eles os cães se não os sabiam tratar? Caçar-lhes-iam a bicharada nociva? Dariam guarda? A nossa família não percebia.
Perguntei muitas vezes ao meu pai se podíamos ficar com o Pirata, já que o dono não se importava que lhe déssemos comida, ou que o cão estivesse por lá. O meu pai dizia que não. O preto era nosso vizinho e isso seria má vizinhança. Ficar com o cão do preto seria passar-lhe um atestado de pretidão, e, mesmo sendo verdade, o meu pai queria manter boas relações com o dono preto do Pirata, homem que tinha legitimamente construído a sua casa numa área de brancos. A ideia era o gajo estar do nosso lado, ir sendo cada vez mais branco.
Trocavam ofertas: o meu pai levava-lhes comida da minha mãe, garrafões de vinho da metrópole; em troca recebíamos garrafas manhosas com sumo de caju fermentado, bebida ultra-alcoólica que o meu pai levava para os seus pretos. Apetecia-me beber daquilo por parecer leite, saber a caju e ter o feitiço que tornava a cabeça mais leve.
Os pretos da casa vizinha cozinhavam na rua, em grandes panelões que colocavam sobre o carvão. Mexiam farinha com peixe seco. Pilavam milho. Assavam maçarocas. Às vezes, carne. Sobretudo galinha. Pelo quintal havia inúmeras à solta. Debicavam aqui e acolá, enchendo o papo de restos, como os cães. Galinhas cafreais, pequenas, cinzentas, acastanhadas, com plumagem multicolorida, e outras muito bonitas, gordas, de pescoço pelado, que punham grandes ovos e eram boas para chocar. A minha mãe gostava das galinhas cafreais gordas. Eram boas mães e davam excelente canja.
Os vizinhos pretos tinham uma bela casa que nunca acabaram. Rebocaram-na, e para ali ficou sem muro, sem pintura; à preto. Porque é que não pintavam a casa? Porque eram pretos e aqui acabava a explicação.
Viviam na rua, debaixo do cajueiro que lhes fazia a sombra. Para que queriam eles a casa? Não sabíamos. Eram pretos. Estendiam a esteira por debaixo do cajueiro e toca a dormir a tarde e a noite. Pela manhã os panelões que assentavam sobre a fogueira de carvão, fumegavam levemente, cortando o nevoeiro das primeiras horas. O sol abria-se logo a seguir. Era um jorro de sangue atirado para castigo da manhã. Um brilho insuportável. Um tecnicolor que ninguém tinha pedido. E os pretos levantavam-se e lavavam-se na rua em enormes barris de metal cheios de água da chuva ou da mangueira. Lavavam muito bem a carapinha, os sovacos, o peito, com sabão macaco, com sabão amarelo, como sabão azul e branco, com sabão desinfectante, tal como os tínhamos ensinado. E esfregavam os dentes, durante uns minutos, com um ramo castanho que iam mastigando pelo caminho. Vestiam-se de branco. Uma camisa branca, uma blusa de algodão branca para ir trabalhar.
Fui algumas vezes ao quintal do meu vizinho preto. Ficava de pé contemplando as operações. As mamanas velhas falavam comigo em landim, e eu percebia só os sorrisos. As crianças não brincavam comigo porque eu era branca e eu não brincava com elas por serem pretas. Olhávamo-nos. Avaliávamo-nos. Os nossos pais conversavam. Que conversa poderia ser essa entre um branco e um preto? Que tinham eles a falar? Nunca soube nada sobre essas conversas civilizadas mantidas entre o meu pai e o vizinho preto do cão branco.
Lá em minha casa dávamos comida ao cão branco do preto. Eu tinha-o trazido para dentro do quintal. Arranjávamos qualquer coisa dos nossos. O animal deliciava-se enchendo a pança. Começou a engordar. O que dariam eles a comer ao escanzelado do Pirata? O meu pai dizia que os pretos não tratavam bem os cães. Andava ossudos de volta das palhotas, comendo os poucos restos, lambendo malgas. Para que queriam eles os cães se não os sabiam tratar? Caçar-lhes-iam a bicharada nociva? Dariam guarda? A nossa família não percebia.
Perguntei muitas vezes ao meu pai se podíamos ficar com o Pirata, já que o dono não se importava que lhe déssemos comida, ou que o cão estivesse por lá. O meu pai dizia que não. O preto era nosso vizinho e isso seria má vizinhança. Ficar com o cão do preto seria passar-lhe um atestado de pretidão, e, mesmo sendo verdade, o meu pai queria manter boas relações com o dono preto do Pirata, homem que tinha legitimamente construído a sua casa numa área de brancos. A ideia era o gajo estar do nosso lado, ir sendo cada vez mais branco.
Trocavam ofertas: o meu pai levava-lhes comida da minha mãe, garrafões de vinho da metrópole; em troca recebíamos garrafas manhosas com sumo de caju fermentado, bebida ultra-alcoólica que o meu pai levava para os seus pretos. Apetecia-me beber daquilo por parecer leite, saber a caju e ter o feitiço que tornava a cabeça mais leve.
Os pretos da casa vizinha cozinhavam na rua, em grandes panelões que colocavam sobre o carvão. Mexiam farinha com peixe seco. Pilavam milho. Assavam maçarocas. Às vezes, carne. Sobretudo galinha. Pelo quintal havia inúmeras à solta. Debicavam aqui e acolá, enchendo o papo de restos, como os cães. Galinhas cafreais, pequenas, cinzentas, acastanhadas, com plumagem multicolorida, e outras muito bonitas, gordas, de pescoço pelado, que punham grandes ovos e eram boas para chocar. A minha mãe gostava das galinhas cafreais gordas. Eram boas mães e davam excelente canja.
Os vizinhos pretos tinham uma bela casa que nunca acabaram. Rebocaram-na, e para ali ficou sem muro, sem pintura; à preto. Porque é que não pintavam a casa? Porque eram pretos e aqui acabava a explicação.
Viviam na rua, debaixo do cajueiro que lhes fazia a sombra. Para que queriam eles a casa? Não sabíamos. Eram pretos. Estendiam a esteira por debaixo do cajueiro e toca a dormir a tarde e a noite. Pela manhã os panelões que assentavam sobre a fogueira de carvão, fumegavam levemente, cortando o nevoeiro das primeiras horas. O sol abria-se logo a seguir. Era um jorro de sangue atirado para castigo da manhã. Um brilho insuportável. Um tecnicolor que ninguém tinha pedido. E os pretos levantavam-se e lavavam-se na rua em enormes barris de metal cheios de água da chuva ou da mangueira. Lavavam muito bem a carapinha, os sovacos, o peito, com sabão macaco, com sabão amarelo, como sabão azul e branco, com sabão desinfectante, tal como os tínhamos ensinado. E esfregavam os dentes, durante uns minutos, com um ramo castanho que iam mastigando pelo caminho. Vestiam-se de branco. Uma camisa branca, uma blusa de algodão branca para ir trabalhar.
Fui algumas vezes ao quintal do meu vizinho preto. Ficava de pé contemplando as operações. As mamanas velhas falavam comigo em landim, e eu percebia só os sorrisos. As crianças não brincavam comigo porque eu era branca e eu não brincava com elas por serem pretas. Olhávamo-nos. Avaliávamo-nos. Os nossos pais conversavam. Que conversa poderia ser essa entre um branco e um preto? Que tinham eles a falar? Nunca soube nada sobre essas conversas civilizadas mantidas entre o meu pai e o vizinho preto do cão branco.