Um pátio cheio de merda

Para além de lavar roupa para fora, a minha avó vivia da criação. Galinhas, pombos e borrachos ocupavam amigavelmente o pátio e almofadavam com excremento todo o percurso cimentado que se percorria até entrar em casa. Era um chão que não se lavava, por fraqueza do verbo; raspava-se com instrumentos agrícolas, e depois esfregava-se com uma vassoura de ramos duros. Quem ali entrava, emudecia. Raramente se tinha oportunidade de ver tanta merda acumulada num espaço tão pequeno.
Quando vínhamos da rua, abrindo-se a porta que dava para o pátio, a primeira coisa a fazer era vigiar o chão que se pisava. Era um hábito que se ganhava, e que a certa altura se tornava natural como abrir os olhos.


A minha avó era visitada por vizinhos que pretendiam comprar criação para abater, e por pessoas que tinham pena dela, porque era uma velha só, quase cega, cujo filho tinha fugido para África. A verdade, que não contava, é que recusara todos os pedidos do filho para se lhe juntar em Lourenço Marques. E agora mandavam-lhe a neta, uma mulher feita, apesar dos 13 anos. Uma responsabilidade. Se tivesse ido, como o filho bem queria, gostava de ver para onde mandavam agora a miúda Nunca verbalizou os seus motivos, mas posso perceber, hoje, que tinha amor à sua criação.
Havia sempre umas galinhas protegidas, que morriam de velhas, cheias de tosse, algumas paralíticas, em caixinhas de papelão donde nunca saíam, e a que ela mudava religiosamente a palha antes de as alimentar. Nos dias de sol punha-as na rua, e elas cacarejavam muito felizes. Eu gostava de meter as mãos nos ninhos das galinhas paralíticas, porque me pareciam velhas sábias, e eram muito quentinhas. Gostava de todos os animais da minha avó, apesar da abundante merda que nos rodeava. Uma pessoa como eu habitua-se a tudo; relativiza a importância da dificuldade, e não festeja às largas a vitória, porque sabe que nada é certo, nada dura. Fora educada segundo esse princípio de sobrevivência que rapidamente se revelara correcto. O meu pai não perdera tudo o que tinha?! E os outros?! Não haviam perdido mais ainda que o meu pai?! Eu não estava agora nas Caldas da Rainha e o meu pai em Cahora Bassa? O que seria o futuro?

Um senhor adulto e solteiro, natural da aldeia da Sancheira Grande, visitava a minha avó todas as vezes que vinha à cidade para compras, e outros assuntos que nunca perguntámos. Era o Paulino. A minha avó recebia-o com a cerimónia possível, esclarecendo-me depois que o senhor era paneleiro, e só por isso o recebia, que naquela casa nunca tinham entrado homens, era uma mulher honesta, que ninguém tinha nada a dizer - mas que eu não podia pronunciar esta palavra em frente a ninguém. Era muito feio.
Um paneleiro não fabricava panelas e tachos; era o nome que se dava aos homens que gostavam de homens. Paneleiros, rabichos. Nunca tinha ouvido? Pois era isso. Mas não era da sua conta, que o Paulino era muito bom homem, e se lá tinha as suas coisas, era a vida dele. Ganhei vergonha ao senhor Paulino. Nunca percebi como se tinham conhecido nem onde, nem o que fazia aquele homem em tal cenário. Que interesse tinham um no outro?! Protegia a minha avó?! Protegia-o ela a ele?!
A ideia de um homem gostar de outros homens era cá de um absurdo! Não me parecia impossível, mas a lógica da relação não estava ao meu alcance. O que faziam eles uns com uns outros? Também namoravam?! Beijavam-se e apalpavam-se?! Imediatamente retirava da minha mente excessivamente visualista essa imagem incómoda, e pensava noutros assuntos igualmente absurdos, mas possíveis, como por exemplo, os outros miúdos, na escola, chamarem-me gorda, ou retornada, ou ambos. Isso era algo que, sendo estúpido, podia compreender. Era maior que eles e tinha vindo de Moçambique, como retornada, logo, era uma gorda retornada.
Quanto ao resto, de certeza que isso de os homens gostarem de outros homens não era nada como o pintavam; seria uma afeição excessiva, um amor platónico, uma admiração pelas qualidades viris alheias. As pessoas exageravam e viam mal em tudo.

Mensagens populares