A tua voz não era a tua voz


I acto, cena I

Personagens - um pai (José) e uma filha (Maria).

Cenário - uma sala com sofás, uma jarra com flores simples, móveis desirmanados; confortável, sem riquezas. Uma mulher de 50 anos sentada no sofá entretém-se tricotando. Dois velhos cães permanecem ao seu lado, deitados pelo chão, mudando de lugar de vez em quando.

O pai, um homem velho, aparece à entrada do compartimento. Aparenta 70 anos, coxeia como quem teve um acidente vascular cerebral. Tem um olhar bom. É um homem grande e belo apesar da velhice e da doença.
A filha vê-o, larga o tricot e levanta-se, como se contemplasse um fantasma.

Maria – És tu?! (aproxima-se, observa-o bem, toca-lhe na cara, segura-lhe uma das mãos, que observa nas palmas) És tu! Como é que conseguiste?! Estavas lá… como é que conseguiste voltar? Voltaste?! (pausa enquanto pensa e o observa) Mas és tu. És tu, sem dúvidas. Estou tão feliz por te ver. Deixa-me abraçar-te. Não me interessa como vieste. Estou tão feliz por te ter de novo.

(Abraçam-se.)

Maria – Senta-te. Senta-te aqui comigo.

José – Estavas sempre a chamar-me. Em pensamentos, em voz alta, nos livros que escrevias…

Maria – Sim, mas chamar-te era uma forma de me sentir acompanhada. Nunca julguei que viesses, que pudesses vir... Não sabia que isso era possível. Nem no Ghost a Demi Moore teve tanta sorte...

José (rindo-se) – Nós vimos isso juntos. Vim porque precisávamos. Parti mal. Parti sem falar contigo. Sem te dizer o que queria.E tu a mim. Depois, publicaste o O Colonialismo Eras Tu, no qual falavas de mim, de quem fui, da nossa relação… e pedi autorização para vir visitar-te.

Maria – Quer dizer que não vais ficar?

José – Só enquanto for necessário.

Maria – Queres ralhar comigo? Queres brigar? Queres acusar-me de te ter desonrado. De ter manchado a tua memória. Espero que não, pai. Estás lá em cima há anos, ou onde raio vocês estão. Deves ter aprendido alguma coisa entretanto. Devem ter-te metido numa escola, à força, e deves ter escrito muitas vezes, “nós e os pretos afinal somos iguais”. Fizeram-te lá isso?

José – Foi pior que escrever muitas vezes. Tive que o provar. Não quero ralhar, não, Maria. Até parece que passei a vida a ralhar-te... (Olha a filha nos olhos, sorrindo com muita ternura). Tu és a minha menina. És o meu tão-balalão-cabeça-de-cão, lembraste?

(Maria dá uma gargalhada.)

Maria – Lembro. Às vezes ouvia a tua voz pronunciar essa cantilena, e doía-me, porque sabia que a tua voz não era a tua voz, era um eco guardado na minha memória. Tu já cá não estavas. Não eras tu. Não imaginas o que é sentir a falta de alguém que nunca voltará. Que na melhor das hipóteses há-de estar à nossa espera do outro lado, com um bocado de sorte.

José – Era eu. Essa voz era eu. Tu foste o meu antídoto. Nasceste para isso. Vim para falar contigo. Vim, para que possas dizer-me tudo o que sempre quiseste. Para te responder, explicar. Não disseste numa entrevista ao Diário do Dia que gostarias de me ter dito tudo o que pensavas? Pois estou aqui.

Maria – Se sabes o que foi dito nessa entrevista também sabes o que penso e o que escrevi.

José – Por acaso sei.

Maria – Então, falar para quê?

José – Por ti. Sempre por ti.


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