Os amigos

Sou resultado da difícil gravidez de uma mulher madura. Os meus pais nasceram em 1924, pelo que, sendo filha única, fui criada à moda antiga. Brinquei e estudei sozinha. Raramente tive direito a conviver com outras crianças. Não fui autorizada a sair. Nunca tive permissão para namorar, nem para qualquer outra actividade, excepto ser caseira, saber fazer tudo e fazê-lo bem, ser uma menina bem comportada, com pensamentos piedosos. A primeira vez que exclamei "vai ali uma mulher grávida" levei uma bofetada. Não se dizia grávida. Dizia-se, está de esperanças, está de bebé. Educaram-me para ser uma mulher honrada, trabalhadora, independente e forte para resistir à dureza da vida. E tudo isso aprendi, mantendo incólume a minha natureza frágil, sensível, impressionável. Sempre achei, e devo-o aos romances da irmãs Bronte, que não interessava o que me obrigavam a parecer desde que, em essência, me mantivesse fiel ao que sentia ser.
A minha mãe ensinou-me a viver sozinha. Dizia-me, não temos amigos, ninguém, nunca. A tua confiança nos outros será defraudada. Quando precisares de alguém, perceberás que afinal não há uma alma disponível para te ajudar. Aprenderás com a vida. Ri-me tantas vezes na sua cara, enquanto à tarde ela me ensinava a fazer ponto pé-de-flor. Chamei-lhe associal e pessimista. Disse-lhe, comigo não vai ser assim, mãe. Isso não é verdade, mãe. As pessoas não são assim, mãe. E ela respondia-me, vais ver, menina, vais ver.
Trouxe agora o meu enxoval para casa. São peças tão antiquadas que me comovem. A minha mãe concordou que já não fazia sentido guardá-las. É engraçado que tendo-me educado para ser uma mulher só, que em princípio cuidaria dos pais idosos, a minha mãe me tenha também educado para ser dona-de-casa, à cautela, não se sabendo o que poderia sair daqui. Nunca fui namoradeira, dizia ela. Ou melhor, nunca lhe pareci namoradeira, porque escondia bem as emoções que sabia desagradarem-lhe. Consumi-me de desejo muito cedo, e talvez a culpa seja igualmente das irmãs Bronte. Ou, então, do caril picante.
O que hoje sei é que essas palavras da minha mãe, que tanto neguei, todas essas palavras de decepção e desconfiança, todo esse discurso defensivo, essas palavras que rejeitei, pelas quais a culpei, tudo isso, tudo, era verdade.

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