Ponham a mulher a escrever

- Aperte com ela.
- Aperto como?
- Explique à diva que, se não escreve, perde o capital do último livro.
Percebi de imediato que a conversa era sobre mim.
Isto foi ontem à noite. Estava para me deitar e peguei no telefone para combinar uma visita à feira de medicina chinesa com a minha prima afastada, e eis que apanho esta conversa entre o Sr. Simões e alguém da minha editora, cuja voz não consegui identificar, o que se justifica pelo fato de ultimamente terem contratado inúmeros funcionários, entre os quais, coordenadores de edição e outras designações profissionais que dão a quem seleciona e acompanha a feitura de um livro, promoção, etc. Parece que os gabinetes já ocupam os andares todos do edíficio no qual se encontra a sede.

Não pude evitar seguir a conversa, embora me sentisse incomodada com a ideia de me intrometer num assunto privado. Mas considerando que eu era o assunto...

Pela primeira vez, creio, ouvi o sr. Simões defender-me, o que talvez me leve a repensar a sua ação junto de mim, o seu trabalho..
- Ela diz que anda cheia de afazeres, que nem para o blogue consegue escrever.
- Cheia de afazeres...
- Que está no início do ano, documentos, uma direção de turma complicada...
- Direção de tuma complicada....
- E que anda cheia de dores de cabeça.
- Oh, Simões, desculpe lá, mas compre-lhe umas caixas de Ben-U-Ron.
- Não é isso, meu amigo, veja bem. A rapariga pode estar mesmo esgotada. Teve um ano muito sobrecarregado, a aguentar aulas de segunda a sexta, mais a promoção do livro, por todo o lado, ao fim-de-semana. Há que ter em atenção aqui alguns aspetos.
- Caro Simões, a sua protegida teve férias para descansar.
- Não é bem assim. Nas férias andou cansadíssima e, simultaneamente, a fazer uma mudança de casa. Já alguma vez mudou de casa?
- E quem é que a mandou mudar de casa? Não sabia que tinha responsabilidades, que escrever era a prioridade?
- Desculpe, mas isso não é da nossa conta. Se a mulher quis mudar de casa algumas razões teria. Ninguém tem de se meter nisso.
- Assim não a podemos ajudar, e você também não lucra, Simões, essa é que é essa. Veja lá se a põe a escrever o que está acordado e já devia ter entregue em... sei lá, Julho, para aí.
- Vou ver o que posso fazer, mas já sabe que ela tem a mania que não é escritora profissional, e que quer ser livre...
- O que a doutora diz não me interessa um chavo. Ponha-a a escrever, Simões. Faça esse favor a si próprio. Compre-lhe umas ampolas para o cansaço. Há o Bio-Ritmo, o Tonicê, a Magnesona... Ela não estará na altura de mudar o antidepressivo? Já cá tivemos uma escritora que só desbloqueou quando o psic lhe mudou o antidepressivo. Veja lá isso...
- Vou ver.
- E ouça, temos agora a coleção Aviãozinho, uns livrinhos para crianças, belissimamente ilustrados e escritos, que lhe vamos mandar.
- Mande, mande, que eu peço-lhe que os divulgue no blogue.
- Sim, faça isso, que ela, como se sente em falta conosco...


O Avião Saltitão, com texto de Bénedicte Houart e ilustração de Sebastião Peixoto. Na capa, o cais no Ginjal, na Margem Sul. Adquira na Angelus Novus, a preços já adaptados ao congelamento salarial.

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